Dizem-nos #FiqueEmCasa, mas e se este único lugar onde é suposto não existirem riscos é aquele onde nos sentimos mais expostos?
Como estudantes a viver com outros estudantes em casas e quartos que lá conseguimos arranjar face à nossa situação económica, presumo que todos nós já tenhamos sentido algum nível de desconforto ao lidar com desconhecidos. Talvez até ansiedade e por vezes, medo – dependerá das nossas experiências pessoais passadas. Começa tudo naqueles primeiros dias como Caloiros quando é tudo novo para nós e ainda não conhecemos bem os nossos colegas de casa. E pensar que vivemos na mesma casa com estranhos, pois afinal de contas, na nossa infância sempre nos ensinaram a não abrir a porta a estranhos! Agora viver com eles é uma necessidade! E sempre que temos de chamar alguém à atenção pela primeira vez, como por música demasiado alta ou falta de loiça lavada, pensamos: Como é que poderá reagir? Pedirá desculpa? Será mal-educado? Irá ignorar-me? É uma aposta.
Situações destas uma pessoa espera. Sempre ouvimos falar de casos assim quer de conhecidos, artigos ou séries: colegas chatos, loiça suja, mau cheiro, festas até tarde, não dormir… é o esperado. Mas e se alguém tem atitudes, não que vos impeçam de ter loiça lavada quando precisam, mas que vos podem colocar doentes, potencialmente gravemente, colocar em perigo não só a vossa saúde, mas também a saúde ou até vida das pessoas com quem têm de se cruzar? Pessoas do trabalho, faculdade, supermercado…
Isto… eu não esperava. Nem eu nem provavelmente milhares de pessoas em situações semelhantes.
No início da pandemia, eu e os meus colegas de casa cometemos um erro gravíssimo que eu espero poder servir de exemplo a outros. Embora talvez demasiado tarde para a situação atual, poderá servir para a próxima pandemia: Não definimos regras para o uso da casa, nem pedimos ao senhorio que as visse ser cumpridas para a nossa segurança. Somos perto de 11 na mesma casa, era precisa gestão. Não pareceu preciso, não que não levássemos a Covid-19 a sério, mas porque já estávamos lá há algum tempo e confiávamos uns nos outros. Um colega até desinfetava as mãos sempre que entrava e saía do quarto, quando o normal era ao entrar na casa. Acontece que numa casa de estudantes estão sempre pessoas a sair e outras a entrar. E numa pandemia há menos pessoas a alugar quartos, já que como é tudo online em certos cursos, muitos têm a possibilidade de voltar para as casas da família, isto combinado com o acentuar das atuais dificuldades económicas. E eventualmente, pode acontecer que de repente vão embora aqueles em que temos mais confiança, que nos protegeriam em alguma situação com outros, e entram outros novos que não conhecemos. E poderá acontecer ficarem sozinhos com pessoas que não têm a mais básica preocupação com a vida dos outros. Foi o que me aconteceu. Cometi o erro de não antecipar isto. Parece tão obvio agora…
Desde os últimos meses de 2020, há quem sem avisos traga regularmente visitas, por vezes grupos, usando áreas comuns como corredores salas, cozinhas, e sem ninguém usar máscara. Não importa que a casa também seja deles, estamos todos a respirar o mesmo ar e a tocar nas mesmas superfícies – há que ter o mínimo de respeito e isso implica que no mínimo dos mínimos os convidados usem máscara sempre que possível. Na altura já achava negligente, mas sempre tive muito medo de confrontações e achei que talvez tudo parasse se a situação pandémica piorasse. Mas nem em Janeiro de 2021 parou…
A ansiedade de pedir às pessoas para serem responsáveis foi-se perdendo para dar lugar à ansiedade de prejudicar alguém a partir de Janeiro, quando as consequências de irresponsabilidades natalícias levaram os hospitais a terem dificuldades na resposta a todos os que precisavam, ao ponto de em todas as redes sociais existirem profissionais de saúde portugueses a lamentar ter de deixar morrer vidas que de outra forma seriam salvas para conseguir salvar outras. De alguma forma sentia-me responsável. E se contribuí para isto por não ter sido mais frontal com tamanhas irresponsabilidades dos outros? E se eu tiver de ir para o hospital e tirar a vaga a alguém? E se for eu que apanho Covid19 num supermercado ou transporte publico e infetar um convidado de outro? Então pedi etiquetas pandémicas básicas, que já se praticavam há quase um ano… evitar grupos grandes, avisar sempre que vêm visitas para eu saber quando ter mais cuidado, e que as tais visitas evitem áreas comuns e usem sempre máscara na casa. Não resultou num aviso, não resultou noutro, algumas coisas mudaram mas apenas a 10% do pedido, outras foram ignoradas, houve mais avisos estes meses, não resultaram os avisos do senhorio quando eventualmente tive medo suficiente para contar o que se estava a passar (e nem contei tudo), e para evitar que eu soubesse de mais alguma coisa chegaram até a fazer algo gravíssimo: trazer amigos sorrateiramente. Devem pensar que não os ouço a falar e a rir e a ouvir musica…mas a verdade é que ás vezes só noto quando vão embora. Para agravar a minha preocupação, parto do princípio que se as pessoas são irresponsáveis ao ponto de virem cá sem o mínimo de noção então também devem de ir às casas de outros amigos e fazer o mesmo lá, e esses a outros, e enfim, toda uma rede de contactos em que bastaria um infetado uma vez para eventualmente chegar tudo cá.
Outro erro meu? Presumir que as pessoas não são más, que poderia existir alguma explicação… No inicio pensei que poderiam realmente não saber como se comportar numa casa com estranhos, depois que poderiam simplesmente ter-se esquecido do que foi dito, se calhar os amigos ou a família obrigavam-nos, ou se calhar as tais visitas precisavam mesmo de um lugar com internet ou um sítio para ficar já que por vezes passavam a noite, mas ainda assim podiam evitar os espaços comuns e usar máscara nesses lugares (quais seriam as chances de todos eles terem algum problema médico que os impedisse disso?) podiam não ter noção que a pandemia podia ser grave, se calhar a culpa é minha porque não me expliquei bem, e se usar outras palavras, e se em vez de dizer que não quero que coloquem a minha saúde em risco disser que não me sinto em segurança na casa? Não resultou. E se disser que estão a arriscar a meter-me num ventilador ou pior, será que assim param? Não pararam… Depois de pedidos de desculpa (obviamente falsos), continuaram a trazer visitas em segredo. Das duas vezes que passei por eles sem querer (não sabia que estavam na cozinha) ninguém usava máscara (e como eu não sabia que lá estavam também não estava a usar), nem verifiquei todas as vezes porque tinha medo de sair do quarto. Nem pararam quando um colega que se encontra num grupo de risco e que vem cá regularmente expressou preocupações.
Conselho: se falarem de coisas sérias em grupo e vos responderem em privado, uma das possibilidades é estarem a tentar esconder algo de alguém – particularmente de senhorios. Em assuntos graves, peçam sempre que se fale entre todos – especialmente se eles já perceberam que sozinhos não lhes conseguem fazer frente.
E agora chegamos às consequências disto tudo na minha saúde mental. Há uns meses (e por vezes até agora) tinha um anseio enorme de sair do quarto com medo de me infetar, ou até receio de mexer no fogão, micro-ondas, máquinas de lavar, casa de banho, respirar o ar, comecei a usar máscara na casa inteira menos quarto – não sabia se lá estiveram pessoas irresponsáveis, ou se estiveram, quantas (ainda vêm em segredo), comia menos e pior porque tinha medo de ir à cozinha, ouvia-os lá, ao ponto de passar fome e não conseguir estar nas aulas. Enfim, sentia que tinha de ter o dobro, triplo, quadruplo do cuidado para compensar a falta de cuidado dos outros. Pensei que com o abrandar da pandemia e o trazer de visitas se fosse tornando mais aceitável a saúde mental melhorasse, mas apenas mudou a preocupação. Agora não tenho tanto medo de ficar doente, mas sinto um medo quase incapacitante de passar ao lado das tais pessoas que eu sei que não se importam com meter a minha saúde e a dos outros colegas e restantes pessoas com que contactamos em perigo só para terem jantares com amigos; pessoas que têm tanto desprezo pela vida de pessoas que mal conhecem, não sabendo sequer as nossas informações médicas, ao ponto de não se importarem minimamente com protegê-las durante uma pandemia, mesmo depois de vários pedidos. Só ouvir as suas vozes e passos já me deixa mal. Ouvi-los a abrir portas assusta-me. Não importa se a pandemia passar, não importa que agora receber visitas já seja mais aceitável, eu sei o que é que elas fizeram e jamais as verei de outra maneira, não vejo colegas, não vejo potenciais amigos, vejo alguém que facilmente podia ter hospitalizado algum de nós sem receios. Deixar loiça suja é infinitamente menos assustador do que isto.
Olhando para trás vejo que cometi muitos erros a lidar com a situação e faria algumas coisas de forma diferente, mas sentia-me entre a espada e a parede. E porque é que não contei tudo aos donos? Porque é que não chamei a polícia quando estava tudo tão grave e já passaram múltiplos avisos? Isto podia sequer ser considerado um crime já que se passou dentro de uma casa? Porque é que não fui mais frontal? Porque não conheço estas pessoas de lado nenhum, não sei como é que podem reagir, não sei o que é que me podem fazer já que claramente não se importam connosco, e se fosse tentar que fossem penalizadas de alguma forma saberiam que fui eu que os acusei, porque não está mais ninguém aqui e eles sabem onde eu moro porque moram comigo!
O primeiro traço destas pessoas com que contactamos é o autêntico desprezo pela proteção da vida humana. Não nos faz querer estabelecer qualquer tipo de relação de amizade e ajuda com elas. Mas isto também acontece com conhecidos. Amigos. E perdem-se amizades, vemos as verdadeiras cores de quem achávamos ser melhor. Família, até. Há crianças e jovens adultos em situações semelhantes com familiares irresponsáveis e têm medo por eles e pelos avós e pais e tios, as famílias recebem visitas, saem todos os dias, obrigam-nos a estar na casa da família quando não têm aulas, a jantar juntos, a ir à casa dos avós, por vezes com trágicas consequências.
Por agora só me resta esperar conseguir lidar com o medo e raiva, não só de ter tido de lidar com pessoas assim, mas também com a possibilidade dos meus erros e falta de coragem poderem ter afetado alguém. E que as pessoas que temo percebam a sorte que tiveram tanto em não serem infetadas como em me terem como colega restante na casa – pois os outros com quem falei não teriam receios em tomar alguma acção para os penalizar. Que haja mais consciencialização sobre isto de lidar com desconhecidos, que penso ser um tópico que requer mais atenção – afinal de contas, ainda há pessoas em situações das quais não podem falar publicamente por questões de segurança.
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Este texto faz parte de uma série de textos de opinião de alunos do ensino secundário e superior sobre a sua visão do ensino e da educação.
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