O ser humano tem uma tendência extraordinária para temer aquilo que não conhece.
Durante anos se falou sobre a praxe em minha casa. Era a mãe que tinha sido praxada (mas muito ao de leve), o pai que não percebia a utilidade da coisa, a avó que tinha um medo terrível que os netos se metessem numa coisa tão perigosa… Os anos foram passando. O irmão mais velho foi para a universidade mas capas negras, praxe, espírito académico foram coisas que nunca lhe despertaram o interesse. Eu assistia a tudo, e aos poucos ia criando uma opinião sobre uma coisa que mal sabia o que era e desde cedo decidi que queria ser praxada, o que quer que isso significasse.
A um ano da universidade: o desastre do Meco. Cada vez mais se multiplicavam comentários antipraxe por todo o lado. Falou-se e discutiu-se em minha casa como em muitas outras, e eu, ainda sem saber bem o que a praxe era, sempre defendi que aquilo que se passou naquela trágica noite pouco dizia respeito à dita cuja…mas quem está de fora não racha lenha.
Segundo dia de universidade. Primeiro dia de Praxe. Aparecem as capas negras. Olhos no chão. Estar de quatro. Encher. Aspirina. Não foi uma primeira semana muito divertida. Nada daquilo fazia ainda muito sentido. Foi aí que conheci a minha madrinha. Lembro-me de me dizer em voz muito alta para manter os olhos no chão e depois de me sussurrar: “Se precisar de alguma coisa…já sabe”.
Primeira vez que os nossos doutores foram à rua connosco. Chovia e nós (sempre debaixo dos guarda-chuvas porque “Deus nos livre que os caloirinhos se constipem”) marchamos rampa abaixo a gritar o nome do nosso curso e quando chegamos junto aos outros a berrar, veio o primeiro friozinho na barriga. Soube aí, nesse momento que se calhar me tinha metido numa coisa importante.
Os dias foram passando. Alguns foram-se cansando e diziam que queriam desistir. Então veio a nossa primeira disputa. Gritamos mais do que sabíamos ser possível por um curso que nem sabiamos ainda bem o que era, e na primeira fila, os nossos doutores, a puxarem por nós, a proteger-nos, a dizerem que nós eramos uma família. Acho que foi aí que começamos a perceber. Nessa noite, pela primeira vez fizeram-nos o “Haka”, um grande símbolo do nosso curso e aos poucos o nosso coração ia enchendo.
Passaram-se semanas, fomos criando laços, partilhámos muitos risos e algumas lágrimas, enchemos por aqueles que chegavam atrasados à praxe, por aqueles que faltavam, por aqueles que não sabiam ainda de cor os nomes uns dos outros (o caloiro é solidário). Em casa não se falava de outra coisa, comecei a adorar aquilo com todas as minhas forças. Cantava as músicas do curso, chorava quando desiludia os meus doutores, vibrava com a praxe e toda a gente sabia disso. Os meus pais não compreendiam: porque é que levava aquilo tão a sério? Afinal não era suposto ser uma brincadeira para nos integrarmos?
Passou a praxe suja (a mais dolorosa para mim). Chegou o batismo. A minha mãe estava lá, a ver. Viu os abraços apertados entre os caloirinhos (todos molhados) e os padrinhos (não mais secos). Viu os sorrisos abertos. Viu os olhos brilhantes. Viu tudo. E acho que aí ela soube…que aquilo era importante. Lembro-me de a ouvir dizer “Tenho pena de não ter sido batizada”.
Chegou a latada. Chegaram os nervos. Chegaram os berros já sem voz. Chegaram os nossos doutores vestidos como caloiros, a correr, a rir e a cantar como se já tivessemos ganho. E nessa noite, quando na tenda da semana do caloiro, disseram que tinhamos ganho… os corações explodiram, as lágrimas caíram, os abraços trocados foram tão sentidos, os sorrisos foram tão sinceros que, aí, eu tenho a certeza, que percebi o que aquilo era.
Eu sou só uma caloira e ainda tenho muito para aprender. Eu sou só uma caloira mas sei quando tenho que dizer que não. Eu sou só uma caloira mas sei que a praxe não tem a ver com humilhação. Eu sou só uma caloira que aos poucos descobriu que os olhos no chão significavam respeito, que o encher quando o semelhante enchia significava solidariedade, que o estar de quatro não nos diminui a dignidade, que a praxe nos dá muito mais do que aquilo que damos por ela, que todos os pequenos sacrifícios são recompensados. Muito mais que integração: união, respeito, aprendizagem, amizade, solidariedade e acima de tudo família, a praxe é isso. Todos os estudantes podem trajar, apenas alguns trajam carregando na capa o orgulho de pertencerem àquela tradição tão nobre. Para perceber é preciso sentir e para sentir é preciso vivê-lo. Quem está de fora não percebe, porque não sabe, porque nunca viveu, porque nunca sentiu.
Eu sou só uma caloira, mas um dia quero ajudar os meus caloiros a criarem memórias tão boas como as minhas. Eu sou só uma caloira que não quer que acabem com uma coisa que até agora foi uma das suas melhores experiências. Eu sou só uma caloira, mas quem melhor que aqueles que o estão a viver, para explicar o que isto é? Eu sou só uma caloira com um simples e sincero pedido: Deixem a praxe em paz.
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Este texto faz parte de uma nova série de textos de opinião de alunos do ensino secundário e superior sobre a sua visão do ensino e da educação.
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