Discussões Filosóficas

   
Racionalmente falando, ou imparcialmente falando, isto é, tentando analisar as coisas o mais independentemente possível das nossas próprias tendências, emoções ou empatias, que razão teremos para condenar uma agressão nessas circunstâncias? Isto é, a não ser pela tendência (irracional) de achar que essa acção deve ser condenada, que princípio racional, que característica objectiva do Universo racionalmente aferível nos obriga a condenar essa acção?

Mais uma vez, deixando de parte, se quisermos, a nossa humanidade e a nossa tendência inata e irracional para achar que essas acções são condenáveis, o que nos obrigaria, de um ponto de vista puramente racional, a postular esse princípio de que "agredir outra pessoa é mau"? Talvez a falha seja minha, mas não vejo outras razões racionais senão as que se enquadrem em produtos da conveniência (não ser preso/ostracizado pela comunidade, não ser agredido de volta, poder ter uma sociedade organizada e mais ou menos pacífica, etc.); em alternativa, se, por qualquer razão, postularmos princípios que as condenem mesmo sabendo que não há motivo para tal, terei forçosamente de concluir que, mais uma vez ao abrigo desta análise racional, estaremos a limitar as nossas possibilidades de acção desnecessariamente, e, enfim, posso ter sido levado pela retórica ao designar isso "uma tentativa ingénua [e] inútil".

Como seguidamente referes (e, da minha perspectiva, bem), o facto de termos a tendência inata e irracional para considerar essas acções incorrectas pode ser um sinal de que efectivamente o são, mas aí já começamos a entrar na perspectiva que defendo: a moralidade não pode ser avaliada à luz de critérios racionais.



Provavelmente não fui muito claro, mas o que pretendia efectivamente defender, incluindo com os exemplos, é que as acções têm uma componente moral que é objectiva e lhes é intrínseca, mas a percepção que dela fazemos pode não o ser.

Isto, no entanto, não quer dizer, para mim, que essa componente moral possa ser decidida com base num conjunto de princípios racionalmente exprimíveis: podemos tentar encontrar, se quisermos chamar-lhe assim, uma teoria explicativa das propriedades morais com base na experiência acumulada que nos permita fazer previsões e, eventualmente, ajudar a suplantar as insuficiências desse nosso sentido moral, mesmo sem ambicionar a tal "teoria do tudo", mas parece-me que estaremos a tentar "racionalizar o irracionalizável". Isso não quer dizer que a tarefa seja intrinsecamente inútil ou inglória (não mais do que o é a racionalização do irracionalizável que se pratica commumente sob o nome de "Ciência"...), mas, da minha perspectiva, estamos a usar os instrumentos errados na análise.

Não consigo fazer uma metáfora tão vívida quanto queria, mas era como se tentássemos adivinhar a forma da membrana de um tambor só pelo som, o que é um problema matemático interessante, já agora, e a resposta pode até ter alguma utilidade mesmo que indirecta, mas acho que todos podemos concordar que olhar e/ou mexer nele acaba por ser uma melhor opção...

Quero apenas dizer que não me esqueci desta discussão e que tenciono responder a esta mensagem, até porque este tipo de questão metaética me interessa bastante. Só não tenho andado com o estado de espírito apropriado para estas reflexões. 😉
 
Quero apenas dizer que não me esqueci desta discussão e que tenciono responder a esta mensagem, até porque este tipo de questão metaética me interessa bastante. Só não tenho andado com o estado de espírito apropriado para estas reflexões. 😉

Caríssima Interrogação Infinita, devo confessar que também não tenho tido muito tempo (nem terei nas próximas semanas), pelo que, pela minha parte, a demora até me é mais do que conveniente; de resto, não vos sintais nunca na obrigação de me responder, posto que até eu me reservo o direito de não me dar troco a (não-)mim mesmo... 🙄
 
Hoje é o Dia Mundial da Lógica!

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A data foi escolhida por 14 de Janeiro ter sido o dia da morte de Kurt Gödel e o dia do nascimento de Alfred Tarski, ambos lógicos do século XX com uma profunda influência na lógica, na filosofia e na matemática.
 
O filósofo político John Rawls faria hoje 100 anos. Concordando-se ou não com as suas posições filosóficas ou políticas, é impossível negar a influência que as suas ideias tiveram na filosofia política do século XX.

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A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é em relação aos sistemas de pensamento.
 
Racionalmente falando, ou imparcialmente falando, isto é, tentando analisar as coisas o mais independentemente possível das nossas próprias tendências, emoções ou empatias, que razão teremos para condenar uma agressão nessas circunstâncias? Isto é, a não ser pela tendência (irracional) de achar que essa acção deve ser condenada, que princípio racional, que característica objectiva do Universo racionalmente aferível nos obriga a condenar essa acção?

Mais uma vez, deixando de parte, se quisermos, a nossa humanidade e a nossa tendência inata e irracional para achar que essas acções são condenáveis, o que nos obrigaria, de um ponto de vista puramente racional, a postular esse princípio de que "agredir outra pessoa é mau"? Talvez a falha seja minha, mas não vejo outras razões racionais senão as que se enquadrem em produtos da conveniência (não ser preso/ostracizado pela comunidade, não ser agredido de volta, poder ter uma sociedade organizada e mais ou menos pacífica, etc.); em alternativa, se, por qualquer razão, postularmos princípios que as condenem mesmo sabendo que não há motivo para tal, terei forçosamente de concluir que, mais uma vez ao abrigo desta análise racional, estaremos a limitar as nossas possibilidades de acção desnecessariamente, e, enfim, posso ter sido levado pela retórica ao designar isso "uma tentativa ingénua [e] inútil".

Como seguidamente referes (e, da minha perspectiva, bem), o facto de termos a tendência inata e irracional para considerar essas acções incorrectas pode ser um sinal de que efectivamente o são, mas aí já começamos a entrar na perspectiva que defendo: a moralidade não pode ser avaliada à luz de critérios racionais.



Provavelmente não fui muito claro, mas o que pretendia efectivamente defender, incluindo com os exemplos, é que as acções têm uma componente moral que é objectiva e lhes é intrínseca, mas a percepção que dela fazemos pode não o ser.

Isto, no entanto, não quer dizer, para mim, que essa componente moral possa ser decidida com base num conjunto de princípios racionalmente exprimíveis: podemos tentar encontrar, se quisermos chamar-lhe assim, uma teoria explicativa das propriedades morais com base na experiência acumulada que nos permita fazer previsões e, eventualmente, ajudar a suplantar as insuficiências desse nosso sentido moral, mesmo sem ambicionar a tal "teoria do tudo", mas parece-me que estaremos a tentar "racionalizar o irracionalizável". Isso não quer dizer que a tarefa seja intrinsecamente inútil ou inglória (não mais do que o é a racionalização do irracionalizável que se pratica commumente sob o nome de "Ciência"...), mas, da minha perspectiva, estamos a usar os instrumentos errados na análise.

Não consigo fazer uma metáfora tão vívida quanto queria, mas era como se tentássemos adivinhar a forma da membrana de um tambor só pelo som, o que é um problema matemático interessante, já agora, e a resposta pode até ter alguma utilidade mesmo que indirecta, mas acho que todos podemos concordar que olhar e/ou mexer nele acaba por ser uma melhor opção...

Olá meus caros e caras! Espero que o tópico da definição da moral não esteja já esgotado e que não se importem que me junte na discussão de tão interessantísimas ideias. Primeiro gostaria de notar que estas são extrapolações próprias de algumas ideias filosóficas muito anteriores a mim e que tenho bué de filosófos por ler e ouvir antes de sequer pensar em conotar de correta a exposição que se segue, por isso conto convosco para me ajudarem a colmatar eventuais falácias ou sofismos. Assim, atrevo-me a propor uma junção (parcial) dos vossos comentários no tema. Não há moral absoluta mas, mesmo assim, a moralidade de uma determinada ação pode ser definida, sem muita ambiguidade. Quero justificar a primeira parte afirmando que as calças do NemoExNihilo não são verdes e que, como diz o Alfa, não importa que o Universo esteja-se a marimbar para as nossas ações. Todos concordamos que as calças do NemoExNihilo serão feitas de um determinado material com determinadas propriedades e que por isso elas refletem uma determinada cor. Mas a cor depende da incidência da luz visível sobre o objeto e do observador, os nossos olhos. A calça continuaria a ser a mesma calça sem luz nem olhos, portanto a calça não é absolutamente verde, pois é independente da cor. Tal como a calça é muito díficil determinar algo que seja absolutamente algo, pois teríamos de considerar esse algo de forma absolutamente imparcial e sobre todos os referenciais possíveis. Vamos supor para o propósito da discussão que agentes morais são seres humanos com livre arbítrio/poder de escolha (abstenho-me de os definir pois isso é outra discussão filosófica). Podemos todos concordar que nenhum humano é completamente imparcial (somos uma amálgama de genética e interiorização de experiências exteriores - a menos que seja um solipsista a ler isto hehe) e que nenhum humano é capaz de considerar uma ação à luz de todos os referenciais possíveis (pois não possuímos conhecimento absoluto). Assim, proponho que não existe moralidade absoluta e nem agentes absolutamente morais, ou dotados de infalíveis faculdades morais. Mas, e se nos depararmos com a pessoa X a agredir a pessoa Y na rua (como hipotetizou o Alfa)? Será que deveremos interceder em favor da pessoa Y, ou da X, instaurando um sistema de justiça baseado em princípios morais relativos? Ou que, numa sociedade totalmente coerente que habita um universo totalmente indiferente, deveríamos continuar a andar ou fazer qualquer coisa que nos apetecesse, como apimentar com mais um pontapé, porque simplesmente à grande escala, a única que perdura, nada importa? Creio que deveríamos, obviamente interceder em favor da pessoa X e tentarei propôr um sistema que possa legitimar essa decisão. Um sistema independente da lei, que como expõe o NemoExNihilo e estou absolutamente de acordo, não equivale à moralidade, mesmo que a moralidade seja de difícil definição. Ora é claro que daqui a 200 anos pouca ou nenhuma influência terá na vida dos humanos de então, um/a X parvo/a que agrediu um/a Y indefeso/a. E então se pensarmos em desfechos risonhos como o sol a virar supernova e a comer qualquer registo histórico da vida humana... Mas a moralidade não necessita de ser absoluta para ser objetiva. E proponho que para qualquer ação dentro da sociedade dos humanos, por mais particular e pequena que seja, ainda podemos aplicar a mesma métrica. Ora, creio que a cada segundo que um sujeito/a imbuído/a de poder de escolha aceita e continua a viver em sociedade, o/a sujeito/a celebra e renova uma espécie contrato social. E isto deriva da definição mais simples que se pode ter da sociedade: um acordo em que muitos/as humanos/as aceitam abdicar de parte da sua liberdade individual em prol de uma vida melhor e conjunta (em princípio, pelo menos). Portanto, eu abstenho-me de quebrar o muro do vizinho, porque quero mais espaço para semear couves, porque sei que ao respeitar a liberdade do vizinho, que por acaso é um professor, mantenho ou promovo a ordem e prosperidade na sociedade, por exemplo. A liberdade dele nesse caso sobrepôs-se à minha, porque anteriormente ao meu frenesi ambos concordamos em ser vizinhos divididos por exatamente o mesmo muro e com exatamente os mesmos metros quadrados de terra. Assim, vejo já formarem-se rudimentos de um sistema moral não absolutamente absoluto mas também não absolutamente dependente da minha intuição (que era a de partir-lhe o muro). O que pautará o sistema moral será então a definição de que limites posso transgredir ou não na liberdade individual dos outros. Creio que aqui o princípio só pode ser um: Apenas tirarei um grau de liberdade do próximo quando isto for absolutamente necessário, e sendo o próximo um agente moral que não incorre ele próprio na restrição de graus de liberdade de ninguém sem o ser necessário, necessito que me dê o seu aval. Ou seja, o absolutamente necessário ainda depende da intuição do humano, que pode ser um agente moral que se decide por uma ação errada, no entanto, o necessitar do aval de um agente moral diretamente envolvido e não interessado em restringir graus de liberdade meus ou de outros no momento da ação, é um tampão eficaz para a grande falibilidade intrínseca da intuição. Logo se X quer agredir Y, não o fará porque não é absolutamente necessário ou porque falhará em obter o aval de Y. Se obter, estamos perante dois agentes morais que ingressaram num contrato mútuo de livre e espontânea vontade, pelo que as consequências de daí advirem são apenas da responsabilidade deles (desde que isso não restrinja graus de liberdade de outros agentes morais*). No máximo, podemos pensar que Y é sadomasoquista. O que pensam?

*devo notar que não creio que precisamos considerar um ser como um agente moral completo para que este "mereça" que respeitemos a sua liberdade, mas isso dependerá da discussão da definição de agentes morais, da sua sua relação com o grau de consciência/senciência dos mesmos, e até de graus de "poder moral", pelo que sendo esta uma outra discussão filosófica abstenho-me de a comentar no momento.
 
Acabei de me deparar, num livro sobre Filosofia, com um poema de Trilussa que achei delicioso (O fim do filósofo) e quis partilhar aqui:

Assim que entrou na floresta virgem
o Professor de Filosofia,
todos os macacos desceram das árvores
com a intenção de o expulsar.

Mas o Homem disse: – Não, não é possível
que eu volte a ser filósofo
numa sociedade cheia de ardis
em que a Acção engana o Pensamento.
Hoje, o que conta são os músculos:
Com a razão não se faz um chavo...
Melhor ser macaco! –

E o pobre filósofo
trepou por um coqueiro acima.


(@NemoExNihilo, talvez aches piada a isto.)
 
Acabei de me deparar, num livro sobre Filosofia, com um poema de Trilussa que achei delicioso (O fim do filósofo) e quis partilhar aqui:

Assim que entrou na floresta virgem
o Professor de Filosofia,
todos os macacos desceram das árvores
com a intenção de o expulsar.

Mas o Homem disse: – Não, não é possível
que eu volte a ser filósofo
numa sociedade cheia de ardis
em que a Acção engana o Pensamento.
Hoje, o que conta são os músculos:
Com a razão não se faz um chavo...
Melhor ser macaco! –

E o pobre filósofo
trepou por um coqueiro acima.


(@NemoExNihilo, talvez aches piada a isto.)

Oook aaak eeek!

Obrigado pela partilha, apreciei, de facto.
 
Quem é a pessoa mais louca? A pessoa louca ou a pessoa que discute com ela?
 
Quem é a pessoa mais louca? A pessoa louca ou a pessoa que discute com ela?

Pergunta mesmo a sério: o que é a sanidade mental? Ou, por outras palavras, o que é a loucura?
 
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Não respeitar os limites da sociedade? Desprezar por completo os conceitos de certo e errado definidos pela sociedade?

Portanto, sugeres que um criminoso, por exemplo, seja um louco?

Ou, para dar um contra-argumento ainda mais intenso, suponhamos que existia uma sociedade onde era um princípio importantíssimo, por exemplo, toda a gente andar a fazer o pino às sextas-feiras enquanto trauteava o quarto andamento da Nona Sinfonia de Beethoven. Pelo teu critério, qualquer pessoa que o não fizesse, dentro dessa sociedade, seria louca. Por outro lado, se o fizermos no seio da nossa sociedade, bem... enfim, se quiseres, experimenta e vê o que dá.
 
Portanto, sugeres que um criminoso, por exemplo, seja um louco?

Ou, para dar um contra-argumento ainda mais intenso, suponhamos que existia uma sociedade onde era um princípio importantíssimo, por exemplo, toda a gente andar a fazer o pino às sextas-feiras enquanto trauteava o quarto andamento da Nona Sinfonia de Beethoven. Pelo teu critério, qualquer pessoa que o não fizesse, dentro dessa sociedade, seria louca. Por outro lado, se o fizermos no seio da nossa sociedade, bem... enfim, se quiseres, experimenta e vê o que dá.
Sim, acho.
 

Então, a loucura corresponde unicamente a desrespeitar as normas de uma sociedade? E a sanidade mental corresponde a aceitá-las na íntegra?

Só para clarificar a tua posição.
 
Então, a loucura corresponde unicamente a desrespeitar as normas de uma sociedade? E a sanidade mental corresponde a aceitá-las na íntegra?

Só para clarificar a tua posição.
Não só. Isso também mas existe outras coisas. Acho que dá para entender agora melhorzinho a minha posição. Não digo que loucura seja unicamente desrespeitar as normas de uma sociedade. Também outras coisas.
 
Não só. Isso também mas existe outras coisas. Acho que dá para entender agora melhorzinho a minha posição. Não digo que loucura seja unicamente desrespeitar as normas de uma sociedade. Também outras coisas.

Com o devido respeito, se pretendes efectivamente entabular uma discussão filosófica e te pedem uma clarificação, acho que seria deveras útil, nessa ocasião, clarificares.
 
Com o devido respeito, se pretendes efectivamente entabular uma discussão filosófica e te pedem uma clarificação, acho que seria deveras útil, nessa ocasião, clarificares.
Tens razão, tens razão. My bad 😅
Mas dá a tua opinião sobre esse tema.
 
Tens razão, tens razão. My bad 😅
Mas dá a tua opinião sobre esse tema.

Vou dá-la, mas peço-te que expandas a tua perspectiva também.

A minha opinião primária é a de que a loucura acaba por ser indistinguível da sua ausência. Não posso ter a certeza de que tudo o que estou a fazer seja real; posso levar grande parte do dia a comunicar com alucinações minhas, posso na verdade estar numa daquelas salas brancas acolchoadas e confortáveis enquanto imagino viver a minha vida, e, visto que não tenho absolutamente nenhuma informação fora desta minha ilusão e toda ela acaba por ser auto-consistente, ela parece-me ser a realidade. Um bom paralelo acabam por ser os sonhos: enquanto sonhas (à parte a alegada experiência dos sonhos lúcidos), tudo o que se passa lá dentro parece fazer sentido, parece ser real, parece ser o que estás a viver, e só quando acordas "sabes" que aquilo não foi real.

A minha opinião secundária é a de que a sanidade mental é, a bem dizer, um conceito inatingível. Dada a complexidade do funcionamento dos cérebros humanos, é mais ou menos inevitável (e, diria mais, acaba por ser desejável...) que todos eles funcionem de forma diferente e, por extensão, que compreendam o mundo de formas diferentes.

Podemos considerar a existência de certos distúrbios no funcionamento fisiológico do cérebro, seja a nível neuroquímico, seja por danos cerebrais, seja por que for, que terão, obviamente, impactos no funcionamento mental dos afectados.

Poderemos considerar que há um conjunto de processos mentais que são mais frequentes do que outros e que, por isso, correspondem como que a um "normal".

No entanto, dada a experiência que temos da "realidade", parece-me que não temos nenhum motivo absoluto para considerar que o que esses processos mentais mais comuns nos devolvem como sendo o mundo correspondem, na verdade, àquilo que existe. Até porque, da minha perspectiva, nada existe...


Enfim, confesso que não foi muito bem explicado nem muito bem elaborado, mas fico à espera do que tenhas para dizer.
 
Vou dá-la, mas peço-te que expandas a tua perspectiva também.

A minha opinião primária é a de que a loucura acaba por ser indistinguível da sua ausência. Não posso ter a certeza de que tudo o que estou a fazer seja real; posso levar grande parte do dia a comunicar com alucinações minhas, posso na verdade estar numa daquelas salas brancas acolchoadas e confortáveis enquanto imagino viver a minha vida, e, visto que não tenho absolutamente nenhuma informação fora desta minha ilusão e toda ela acaba por ser auto-consistente, ela parece-me ser a realidade. Um bom paralelo acabam por ser os sonhos: enquanto sonhas (à parte a alegada experiência dos sonhos lúcidos), tudo o que se passa lá dentro parece fazer sentido, parece ser real, parece ser o que estás a viver, e só quando acordas "sabes" que aquilo não foi real.

A minha opinião secundária é a de que a sanidade mental é, a bem dizer, um conceito inatingível. Dada a complexidade do funcionamento dos cérebros humanos, é mais ou menos inevitável (e, diria mais, acaba por ser desejável...) que todos eles funcionem de forma diferente e, por extensão, que compreendam o mundo de formas diferentes.

Podemos considerar a existência de certos distúrbios no funcionamento fisiológico do cérebro, seja a nível neuroquímico, seja por danos cerebrais, seja por que for, que terão, obviamente, impactos no funcionamento mental dos afectados.

Poderemos considerar que há um conjunto de processos mentais que são mais frequentes do que outros e que, por isso, correspondem como que a um "normal".

No entanto, dada a experiência que temos da "realidade", parece-me que não temos nenhum motivo absoluto para considerar que o que esses processos mentais mais comuns nos devolvem como sendo o mundo correspondem, na verdade, àquilo que existe. Até porque, da minha perspectiva, nada existe...


Enfim, confesso que não foi muito bem explicado nem muito bem elaborado, mas fico à espera do que tenhas para dizer.

Eu penso que, mesmo admitindo que não podemos ter a certeza de não viver numa ilusão, é possível dar sentido ao conceito de "loucura". Pelo menos diria que essa ausência de certeza não justifica por completo a impossibilidade de dar sentido a esse conceito.

Não quero entrar numa discussão sobre o significado de "real" ou "existente", que nos levaria a afastarmo-nos demasiado do tema em causa. No entanto, mesmo que o nosso acesso a um putativo "mundo real" seja impossível, penso que podemos afirmar com alguma segurança que a percepção que cada um de nós tem do mundo real tende a ter algumas regularidades de comportamento (não acho que seja possível viver sem agir sob a assunção de pelo menos algumas dessas regularidades). É isso que te permite afirmar que "há um conjunto de processos mentais que são mais frequentes do que outros".

Penso que a falha nesse raciocínio está no que dizes a seguir. Não tem de existir um mundo "real" ao qual a nossa percepção corresponda e, caso exista, não temos de ter acesso a ele para podermos fazer uma avaliação de que processos mentais são "normais" ou "patológicos". Essa avaliação pode ser inteiramente feita dentro do "universo" da nossa percepção.

Deixa-me tentar clarificar com um exemplo talvez mais simples. A minha percepção do mundo diz-me que se eu largar um objecto enquanto me encontro à superfície da Terra, este cai. Eu não sei se o objecto existe mesmo fora da minha ideia dele ou se o mundo existe ou se existe o meu corpo que o larga. No entanto, existe suficiente coerência interna nas minhas percepções para que eu possa afirmar que é "estranho" ou "anormal" o objecto flutuar em vez de cair. Isso seria uma anomalia. Tu podes dizer "mas não sabemos se é mesmo uma anomalia porque o "caso normal" pode não corresponder ao mundo real"; eu respondo que isso não interessa nada. Estou a avaliar o que é anómalo usando como referência a regularidade usual das minhas percepções, sem assumir que um "mundo real" existe fora delas.

O mesmo pode ser feito em relação ao conceito de "saúde mental" ou de "saúde" mais em geral. Considerando (e isto é altamente discutível, simplificarei apenas para os propósitos desta discussão) que a loucura é um desvio anómalo dos processos mentais usuais, essa aferição pode ser feita tomando como "processos mentais usuais" de referência aqueles que a minha percepção me faz reconhecer como os regulares e não outros quaisquer mais reais aos quais não temos acesso. É isso que nos permite falar em loucura (e em milhentas outras coisas), mesmo incertos de que isso corresponda ao que é "mesmo real".
 
Eu penso que, mesmo admitindo que não podemos ter a certeza de não viver numa ilusão, é possível dar sentido ao conceito de "loucura". Pelo menos diria que essa ausência de certeza não justifica por completo a impossibilidade de dar sentido a esse conceito.

Não quero entrar numa discussão sobre o significado de "real" ou "existente", que nos levaria a afastarmo-nos demasiado do tema em causa. No entanto, mesmo que o nosso acesso a um putativo "mundo real" seja impossível, penso que podemos afirmar com alguma segurança que a percepção que cada um de nós tem do mundo real tende a ter algumas regularidades de comportamento (não acho que seja possível viver sem agir sob a assunção de pelo menos algumas dessas regularidades). É isso que te permite afirmar que "há um conjunto de processos mentais que são mais frequentes do que outros".

Penso que a falha nesse raciocínio está no que dizes a seguir. Não tem de existir um mundo "real" ao qual a nossa percepção corresponda e, caso exista, não temos de ter acesso a ele para podermos fazer uma avaliação de que processos mentais são "normais" ou "patológicos". Essa avaliação pode ser inteiramente feita dentro do "universo" da nossa percepção.

Deixa-me tentar clarificar com um exemplo talvez mais simples. A minha percepção do mundo diz-me que se eu largar um objecto enquanto me encontro à superfície da Terra, este cai. Eu não sei se o objecto existe mesmo fora da minha ideia dele ou se o mundo existe ou se existe o meu corpo que o larga. No entanto, existe suficiente coerência interna nas minhas percepções para que eu possa afirmar que é "estranho" ou "anormal" o objecto flutuar em vez de cair. Isso seria uma anomalia. Tu podes dizer "mas não sabemos se é mesmo uma anomalia porque o "caso normal" pode não corresponder ao mundo real"; eu respondo que isso não interessa nada. Estou a avaliar o que é anómalo usando como referência a regularidade usual das minhas percepções, sem assumir que um "mundo real" existe fora delas.

O mesmo pode ser feito em relação ao conceito de "saúde mental" ou de "saúde" mais em geral. Considerando (e isto é altamente discutível, simplificarei apenas para os propósitos desta discussão) que a loucura é um desvio anómalo dos processos mentais usuais, essa aferição pode ser feita tomando como "processos mentais usuais" de referência aqueles que a minha percepção me faz reconhecer como os regulares e não outros quaisquer mais reais aos quais não temos acesso. É isso que nos permite falar em loucura (e em milhentas outras coisas), mesmo incertos de que isso corresponda ao que é "mesmo real".

Sem dúvida que, assumindo a existência da realidade (o que, obviamente, é mais ou menos inevitável para desempenharmos um dia-a-dia no seio dessa mesma realidade, por menos real que ele possa ser...), somos perfeitamente capazes de estabelecer o que é normal e o que vai contra essa normalidade, e, por extensão, definir comportamentos "mentalmente sãos" e "loucos" (ou outros rótulos porventura mais adequados, posto que falar em Saúde remete logo para questões médicas que só complicariam o assunto - como, admito, inadvertidamente fiz ao referir as alterações do funcionamento dos cérebros - em minha defesa, estava a tentar mencionar uma versão mais soft do meu anti-realismo para não assustar logo o @PedroJesus17). E a extensão dessas considerações a todos os restantes processos, como o teu assaz pertinente exemplo da queda dos corpos, é mais do que natural.

Agora, acho que discordamos é das consequências deste relativismo ontológico (à falta de termo mais apropriado). Obviamente que temos de concordar que as definições para "normalidade" a que chegaremos por observação do mundo que nos rodeia são suficientemente boas para descrever esse mundo que nos rodeia e, para todos os efeitos práticos (no seio desse mundo), são elas que interessam; no entanto, o que eu digo é que, precisamente por esse mundo não ser real, ou poder não ser real, essas definições estão intrinsecamente erradas, ou, no mínimo, jamais poderão estar certas, e que é indesejável atribuirmos-lhes um absolutismo que não possuem.

Se, com isto, acabo por reduzir a nada qualquer debate filosófico? Se calhar. Se calhar, afinal não gosto de todo de filosofar. 🤪

Se, por outro lado, sou exagerado ao fazer o salto de "esses conceitos jamais podem ser absolutos" para "esses conceitos não existem"? Admito que sim, mas aí é a veia artística, excêntrica, a pulsar, fazendo-me emitir as afirmações o mais estapafúrdias possível e continuar a tentar justificá-las perante todas as críticas e objecções...
 
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