Eu não concordo com a conclusão de que essas definições estejam necessariamente intrinsecamente erradas, precisamente porque há uma diferença entre não serem absolutas e serem falsas. Consideremos as duas proposições seguintes:
- Não existe um universo independente das nossas mentes ou, caso exista, não lhe temos acesso.
- A verdade é uma questão de adequação ou correspondência a um universo independente das nossas mentes.
Se acreditares em ambas, então tens razão. O que eu acho é que, se uma pessoa acredita em 1, fará melhor em não acreditar em 2. Talvez não possa alguma vez acreditar numa noção de verdade mais tradicional, mas se quiser dar algum tipo de sentido (porventura mais fraco) aos conceitos de verdadeiro e falso, terá de definir esses conceitos de uma forma que encaixe apropriadamente com a sua visão ontológica. Na minha resposta anterior, só aflorei a questão, mas diria que há (pelo menos) duas hipóteses, alternativas a 2, para quem aceita 1:
- A verdade é uma questão de adequação ou correspondência às nossas percepções do mundo.
- A verdade é uma questão de coerência com as nossas percepções do mundo.
A primeira opção é uma versão da teoria da correspondência da verdade que toma como referência não o mundo como ele é, mas o mundo enquanto percepção nossa. A segunda opção é uma alternativa mais radical, que rejeita por completo a teoria da correspondência (já agora, é possível subscrever a teoria da coerência mesmo que se rejeite 1).
Eu acho que é difícil negar que, ainda que não haja universo algum fora das nossas percepções, estas gozam, como disse antes, de um nível de coerência e regularidade que torna possível pôr em cima da mesa conceitos como os de "verdade", "conhecimento", etc. E, por essa razão, quem subscreve essa possibilidade tem o ónus de apresentar uma teoria satisfatória do que significam estes conceitos, sob pena de ser incoerente com a forma como age e pensa todos os dias, que requer que tais conceitos façam sentido.
Quando estava a tentar escrever o meu argumento, apercebi-me de que rapidamente mergulhei num vago paradoxo vagamente delicioso: ia perguntar que razão absoluta teríamos para não aceitar simultaneamente (1) e (2), mas rejeitar (2) também implica, em última análise, que não precisamos de dar razões absolutas para fazer seja o que for, apenas as que sejam mais úteis/relevantes/benéficas para a nossa experiência no seio daquilo que se nos apresenta como "real".
Devo confessar-me, porém, refém de uma tendência porventura irracional e/ou injustificável para o absolutismo, no sentido em que, embora concorde que, numa "realidade" imbuída de suficiente regularidade no seu comportamento, seja possível estabelecer a (a)normalidade dos fenómenos pela frequência com que ocorrem e, por extensão, fazer algo que se aproxime de Ciência (no sentido mais abrangente possível do termo), me parece arrogante apropriarmo-nos do termo "verdade" e "mentira" para descrever a relação entre as observações que fazemos a essa (a)normalidade. À falta de melhor exemplo, creio que o salto de "o céu que eu vejo é azul" a "o céu é azul", neste contexto e sob esta perspectiva em que a realidade não é absoluta, é abusivo.
Claro, não disputo que o céu que eu vejo seja azul e que todas as experiências, directas ou indirectas (como perguntar a outros seres), que faço no seio desta realidade que percepciono concordam nesse facto. E também não posso disputar que, caso tivesse de fazer alguma escolha no seio desta realidade que fosse dependente da cor do céu, a opção que seria racionalmente justificável seria aquela que assumisse que a sua cor era azul. O que eu disputo é que isso me possa permitir dizer que o céu que eu vejo, por um lado, existe e, por outro lado, que ele possui mesmo a propriedade de ser azul. Mas admito que é muito mais curto dizer "é verdade que o céu é azul" em vez de "no seio desta realidade que percepciono, todas as experiências, directas ou indirectas, que desde sempre tenho feito só me permitem concluir que o céu que tenho podido observar é azul"...
Deixando de parte estas questões metafísicas mais sumarentas, e tentando voltar-me a focar no caso da (in)sanidade mental, ou, para ser absolutamente preciso, das formas de (in)sanidade mental que no fundo estamos a debater, que são aquelas capazes de influenciar a percepção da realidade, creio que o caso se agrava mais precisamente por tornarem mais óbvia a fragilidade da concepção que temos de um "mundo real". Da mesma maneira que, argumentando sobre a realidade, acabamos por recair na impossibilidade de fazer qualquer experiência que escape ao conjunto de percepções a que chamamos "mundo real", também se torna pouco menos do que impossível distinguir entre uma coisa alucinada e não alucinada. Não me parece inconcebível, por um lado, que se alucine que todas as pessoas que encontramos negam a existência de determinada coisa, que, no entanto, é tão real para elas quanto para nós, e, por outro lado, que alucinemos não só com uma coisa, mas com todos os outros a confirmarem a sua existência. Embora uma aplicação mínima da Navalha de Occam deite por terra estas efabulações minhas, parece-me que o simples facto de ser concebível que isto ocorra é motivo suficiente para pôr em causa a existência de uma realidade objectiva, daí que tenha afirmado que "a loucura é indistinguível da realidade".
Obviamente que, medicamente falando, os mecanismos das perturbações da saúde mental são mais complexos e as alucinações "não funcionam exactamente assim", e existe todo um outro conjunto de perturbações que não afectam desta forma a percepção da realidade; obviamente, aqui começamos a entrar no âmbito de discussões clínicas e não filosóficas. Ainda assim, quero aproveitar para reforçar a minha afirmação anterior (que apelidei de "opinião secundária") de que, sendo os cérebros humanos como são, se olharmos com suficiente cuidado, seremos todos doentes mentais e, num certo sentido, ainda bem que assim é.
Sanidade mental é a ausência da normalidade. Normalidade é relativo aos padrões da sociedade consoante esta evolui. Ou seja, o que é normal agora, não é o que era normal no passado nem será igual ao do futuro. Por exemplo, mulheres que conseguem fazer matemática era considerado bruxedo, no presente, é algo completamente normal.
E agora, imagina um mundo vazio em que o único habitante és tu. O conceito de normalidade seria definido por ti, certo? Tudo o que funciona de forma diferente seria loucura? O ser humano quando nasce é como se fosse uma folha em branca. O que o define é o seu ADN e a sua relação com o ambiente e com as pessoas/animais ao redor. Tirando a segunda da equação, ficando só o ambiente, com varios mundos paralelos e vários ambientes diferentes, ou iguais, mas com folhas brancas "diferentes", ou seja, pessoas com ADN diferentes, cada pessoa teria personalidades, modo de pensar, etc... Diferentes. Se compararmos os conceitos de normalidade de cada uma com a outra, será que é igual, ou diferente? Se cada pessoa funciona de modo diferente, e a loucura é o contrário do que é normal para cada um, logo, ambos têm diferentes conceitos de loucura. Ou seja, a sanidade mental poderá ser algo subjetivo.
Sanidade mental em termos médicos, ocorre quando há anomalias... Na mente, senão não era mental... Certo? Mas e se num certo universo o cérebro daquela exata forma for o "normal"? O normal então, neste caso, não pode ser definido por algo como a mente humana, mas por algo maior... Talvez pelo próprio universo? Sanidade mental é tudo o que não corresponder à normalidade do universo em si. Lógica. Tudo o que não é logico, não é normal, logo, não é são da mente. Os humanos não são seres lógicos, podem ser em algumas coisas, mas noutras já não. Então, toda a humanidade é louca?
Queria, em primeiro lugar, pegar no teu argumento de "um mundo vazio em que sou o único habitante" para te perguntar se, nesse caso, achas que fará mesmo sentido invocar o ADN, o desenvolvimento do cérebro como tal e por aí fora, uma vez que tudo isso advém de todo um conjunto de processos físico-químicos que dependem da existência de muitas mais coisas para além de mim. Acaba por ser o velho pequeno grande problema do materialismo, isto é, se a consciência advém simplesmente das estruturas cerebrais ou se tem alguma propriedade que, de algum modo, as transcende.
Depois, parece-me pouco sustentável sujeitarmos o conceito de "sanidade mental" exclusivamente à lógica; afinal, num certo sentido, poderíamos encontrar argumentos lógicos para sustentar que cada uma das nossas existências apenas traz mais prejuízos do que benefícios ao Universo no seu todo (o mais premente: o aumento de entropia associado aos processos metabólicos), mas suponho que o consenso geral seja de que esta perspectiva não é lá muito recomendável do ponto de vista da sanidade mental.
Olá, decidi saltar aqui para a esta discussão. Eu discordo do que referiste dos sonhos, existem por exemplo sonhos lúcidos nos quais a pessoa se apercebe que está a sonhar e muitas vezes consegue criar certos objetos, cenários etc. Que não façam sentido, ou pelo menos sejam invocados de forma aleatória (se é aleatório ou não isso não sei). Posto isto, penso que na maioria dos casos, estás correto na tua premissa, aliás de experiência pessoal já tive sonhos que não faziam sentido, e reflectindo um bocado sobre estes, as "peças" começaram a encaixar, o mais engraçado é que me apercebi de certas representações, que à partida seriam sem significado, mas na minha ótica tinham significado, e o modo de perceção destas foi quase "inconsciente", surgiu de uma reflexão medidativa não lógica à priori, mas que teve lógica em todo o cenário enquadrado do sonho.
Quanto a nível da sanidade, bem é uma tema extremamente complexo. Por acaso, penso que o pós-modernismo seja uma linha de pensamento pouco racional e pragmática em questões políticas e epistemológicas mas penso que na questão da sanidade mental tenham alguma razão ou pelo menos críticas bastantes pertinentes a fazer. De grosso modo, o facto da sanidade mental ser definido cientificamente por instituições autoritárias que impõem o que é classificado ou não como doença mental, faz dela uma construção social de certa forma. A meu ver, a psiquiatria é das áreas das ciências mais subdesenvolvidas e em parte isto é pela dificuldade de aplicar o chamado método científico em questões da classificação das doenças mentais, que se pode certamente argumentar quanto à sua objetividade, por exemplo a homossexualidade era considerada uma doença psiquiátrica até 1980 salvo erro, pela instituição americana da psiquiatria (não sei o nome de cor, mas podem conferir isto na internet). Acho que hoje em dia, a maioria das pessoas não considera a homossexualidade uma doença psiquiátrica, e a meu ver é completamente absurdo está classificação.
Portanto, na minha opinião não existe o conceito de sanidade mental essencialmente, pode existir sim como forma de conduta social, mas que infelizmente estará por este motivo subjetivo a organizações com poder e ou governos, e portanto a sanidade mental pode até ser subjetivo a diferentes formas de governo, culturas etc.
Concluindo, acho que existem alguma utilidade em definir socialmente sanidade mental, quanto isto levanta objeções morais, como danos a indivíduos ou danos a animais, mas infelizmente esta definição pode ser corrompida, até devido à subjetividade global do conceito de moral :)
Obrigado pela contribuição!
É relevante essa menção à utilidade da definição da sanidade mental, porque há todo um outro aspecto bastante relevante nesta discussão a que aludes, e bem: o que nos permite dizer que certo indivíduo é verdadeiramente responsável pelas suas acções? Ou, inversamente, em que circunstâncias será (sob o ponto de vista legal ou moral, que, obviamente, não serão bem os mesmos...) aceitável dizer-se que as acções que certo indivíduo tomou não lhe devem ser imputadas? Derivamos, no fundo, para a questão da agência moral, mas obviamente que tem muitas ligações à sanidade mental no sentido em que é comummente aceite que a ausência desta última pode resultar na ausência da primeira.
Há semanas atrás, vi uma publicação interessante que dizia algo do género: " Quando finalmente deixarmos de usar máscara, muita gente ainda terá uma..." E eu pensei, ok, good one, é verdade, existem muitas pessoas falsas neste mundo. Mas hoje pensei... Porquê que é algo mau? Sermos falsos não é necessariamente algo negativo, é apenas esconder nos por detrás de uma certa pessoa, um outro eu, digo eu. Cada vez mais com o passar do tempo existe esta necessidade de proteger-nos por detrás de uma máscara, salvaguardar o quê? Os sentimentos? Os nossos pensamentos e ideais? Os nossos segredos menos bons? Uma pessoa falsa é considerada uma pessoa "má" mas e se tornar-se apenas algo normal devido a ser preciso esconder o nosso verdadeiro ser da sociedade e dos seus julgamentos? @Alfa @NemoExNihilo
Falando-se de falsidade no sentido de dissimulação, engano ou mentira, e não no sentido absoluto de "afirmação de inverdades", queria apenas perguntar: que instante da existência de qualquer pessoa não envolve qualquer espécie de falsidade? Seria possível existir qualquer estrutura social sem essa dissimulação? E, mais, será desejável dizer-se a verdade independentemente das circunstâncias?