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gravidade moral
Continuo a não perceber como é que o direito a uma morte digna é uma matéria de "gravidade moral", mas é igual com quase todas as circunstâncias em que o termo é empregue, ou seja, numa tradução quase feia, é uma objeção ao facto de que não podermos controlar a vida e a circunstância de vida dos outros. É a mesma "gravidade moral" do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a mesma "gravidade moral" do aborto.
Eu não sou contra um referendo da eutanásia, de todo, mas um país não avança com a sua democracia porque analisa moralidades subjectivas, mas sim porque analisa moralidades objectivas, e a moralidade objectiva duma sociedade moderna está, e está sempre, e estará sempre associada à dignidade da pessoa e na proteção da dignidade individual concomitante com o respeito dos valores colectivos. Aliás, os valores colectivos só existem porque -- e para -- salvaguardar a dignidade de cada indivíduo.
Não me apanharão nunca a defender que alguém deve ser privado duma morte digna, ritualizada e respeitada (e respeitante), porque isso fere as minhas moralidades subjectivas. Isso, sim, é a superioridade moral de que muita gente fala no campo político mas raramente usa como deve ser. Não há nada na eutanásia que contrarie nenhum pilar da moralidade objectiva que conheça excepto o da primazia da vida, mas a vida e a morte, embora tidas como absolutos porque tal como alguém não pode mergulhar no mesmo rio duas vezes, também não pode, através da linguagem, conservar toda a fluídez dos conceitos, e assim sendo, a vida e a morte são um gradiente muito interessante; a conclusão voluntária da vida é ainda mais antiga que a democracia. A própria lírica grega conta-nos de heróis como Ajáx que, de facto, se suicidam, e aqui já entendemos este suicídio como motivado apenas pelo foro psicológico, que é minoriário nas instâncias de eutanásia que conhecemos até então. A conclusão prévia duma vida que iria terminar de maneira pior e de forma mais violenta irá deveras ser determinada por um nível de empatia e misericórdia de cada um e de como cada um observa esse parâmetro. Agora, não me vendam o peixe de que o suicídio é contra a moralidade colectiva da preservação da vida quando existem e sempre existirão excepções absolutamente medonhas a esta moralidade. Aliás, arrisco-me a dizer que é a herança moral mais trangredida e deturpada de todas ao longo da História. Abrem excepções de todos os tipos mais abomináveis, mas não o fazem para uma morte digna e para a defesa da autonomia do ser individual? Bah. Fariseus, somente.
Há discussões éticas a serem feitas por profissionais de saúde, e essas são mesmo impactantes e devem ser ouvidas, e são esses profissionais que importa ouvir; é importante termos o direito a algo que nos diz respeito a nós e à nossa dignidade, e é importante ouvir a quem caberá a responsabilidade da manifestação desse direito, como os profissionais de saúde. Não acho que seja pertinente ouvir uma meia dúzia de gatos pintados que estão muito ofendidos com o facto da sua moralidade subjectiva ser injuriada porque outra pessoa quer terminar a sua vida aflitiva e cruciante. Não lhes diz respeito. A não ser, claro, que queiram também eles poder vir a recorrer à eutanásia, e nesse caso, há panfletos.


