Pronto, ainda bem que ficámos com as coisas esclarecidas. Eu não gosto de conotar as coisas logo como críticas ou não, se a minha análise pode parecer "negativa" porque o Estado diz-se ser uma coisa mas não é assim tanto o conceito que supostamente defende? Claro que pode parecer, cada um tira as suas conclusões do raciocínio, mas eu acho que é uma análise perfeitamente razoável e que em nada pretende atacar a Igreja. Aliás, no limite, diria que se fosse uma crítica, seria uma crítica ao próprio Estado ou à concepção do mesmo, que não é fundamentalmente tudo aquilo que supostamente um Estado laico poderia implicar. No limite, criticaria o Estado legislar o casamento católico, mas nada referir às outras religiões - e não se trata para mim de questões de quem é a maioria ou não, desde que exista um número significativo de pessoas de outras religiões a casar-se, faz sentido que a legislação contemple e regulamente esses casos, se regula uns, até porque o facto de sermos laicos implica que não há distinção entre as religiões, mesmo que elas se manifestem em quantidades de crentes diferentes. Trata-se de coerência com aquilo que dizemos ser e o estatuto com que nos apresentamos. Portanto, no meu ponto de vista, se há fundo para crítica é mais pela via das acções que o Estado pode tomar e não tanto da Igreja.
Mas a potencial crítica que poderemos fazer estou apenas a fazê-la agora, quando comentei anteriormente não tinha qualquer intenção de fazer mais do que uma constatação. Em filosofia, é relativamente comum as análises parecerem francamente negativas, mas parece-me mais que muitas vezes a filosofia coloca em questão as definições e os próprios conceitos em si e analisa as coisas de tal modo que nos pode parecer que está a criticar algo, quando não está. Não acho que interrogar, ou dizer que poderá existir um determinado cenário para uma "crítica", ou pensar criticamente sobre um assunto não significa que achemos que algo é mau ou bom. A conotação só deveria ser dada bastante depois, mas talvez seja eu que goste de segmentar muito as discussões.
Quanto ao resto, claro, o facto de dizer que existe um partido que defende e está ligado às ideias da I.C.A.R. não significa que a maioria dos partidos assim seja, nem me parece correcto limitar a expressão da religiosidade ou ausência dela por parte da classe política. Qualquer político pode ter ou não religião e pode perfeitamente expressar a sua religião, mas a partir do momento em que tens um partido cujo programa político obviamente não nega a defesa dos valores católicos, não podes dizer que corresponde a uma definição pura de um Estado laico, na medida em que um Estado é tanto mais laico quanto menos valores religiosos estão expressos não só nos seus documentos legais, como na sua representação, neste caso, nas forças partidárias. A partir do momento em que há um partido (podia ser um, ou muitos mais, é novamente indiferente o número), o Estado está indirectamente a admitir que a religião e a política continuam ou podem continuar ligadas e que a "separação entre Igreja e Estado" não é total. Ora, a meu ver, num Estado absolutamente laico, por muito que qualquer indivíduo pudesse escolher a sua religião, a religião não transpareceria de maneira nenhuma para as forças de poder. Os partidos poderiam defender os valores que quisessem, mas nunca poderiam associá-los à Igreja. Sou da opinião que isto teria uma consequência um pouco óbvia: imaginemos, com o CDS - eles continuariam a defender exactamente a mesma coisa, só que em versão encapotada. Para isso, mais vale que abertamente digam que estão sim ligados a determinada religião. Mas também mais valeria sermos mais transparentes nesta questão e podermos dizer abertamente que o nosso Estado tem alguma relação com a Igreja, não só o nosso, como muitos outros e admitirmos que coisas simples como os feriados que celebramos são uma expressão dessas mesmas relações. Para mim, tentar ignorar tudo isto é um bocado atirar areia para os olhos e achar que a religião nada tem que ver com o poder político é uma maneira limitadora de compreender as relações de poder que tivemos, as que temos e o que poderemos fazer ou não com as do futuro.
Novamente, tudo isto é a minha opinião sobre a forma como poderíamos olhar e analisar as coisas, não sou de todo nenhuma especialista e isto é só o que tenho aprendido ao tomar um ponto de vista mais analítico.
E sobre a questão que falaste, a notícia mais recente que encontrei foi
esta. Em momento algum foi dito que nenhuma outra religião era protegida pelo Estado de maneira alguma, mas não é difícil percebermos a discrepância, que não é o que pode existir num Estado laico - acabei por me focar mais na legislação sobre os casamentos.
Júlio, mas tu defendes a castração química nos casos de pedofilia. Além de toda uma discussão sobre a eficácia do castigo, que não me interessa discutir agora, por não ser esse o assunto, também terias sempre uma probabilidade de infligires o castigo em pessoas que possam ter sido falsamente sentenciadas. Da mesma maneira que acreditas na corrupção de um documento como um testamento vital, deverias colocar também na equação a corrupção que possa existir em determinados casos, a menos que existam provas inequívocas, o que nem sempre é o caso.
Além disso, não acho que a maneira de resolver a questão da eutanásia seja "se pode haver corrupção, logo não pode haver eutanásia", porque seguindo esse raciocínio, então nunca poderás tomar várias decisões pelo simples facto de que há a probabilidade de algo sair enviesado. A forma correcta de pensar na questão, a meu ver, é aplicar e pensar em medidas que possam combater e limitar essa corrupção, tanto quanto for possível, não passa por arranjar uma alternativa que em nada substitui o que a eutanásia contempla. Porque para mim o maior defeito da solução que apresentas é que muitos dos casos das pessoas que estão aptas para a eutanásia não estão, de todo, aptas para o suicídio assistido, enquanto que os casos contemplados para o suicídio assistido parecem-me contemplados com a eutanásia. Por aqui termino a conversa, acho que tens todo o direito a tomar a posição que entendas, eu continuarei a pensar que o correcto é pensarmos medidas para tornar o processo o mais justo possível e para que possa chegar a todos aqueles que precisam, e não só alguns...
Certo, obviamente que discordo porque uma pessoa que esteja em estado vegetativo/coma/morte cerebral não tem mais a capacidade de conseguir formular raciocínios como eu ou tu. Estás a trabalhar num cenário hipotético de
what if's, mas o mesmo poderia acontecer com o próprio suicídio assistido - e se a pessoa tomasse a medicação e automaticamente se arrependesse? E se se tivesse sentido coagida a tomá-la, por qualquer motivo real ou imaginário? São questões que para mim não fazem parte do debate real e que se tratam de incertezas - para mim, absolutamente que o testamento vital se sobreporia à não-capacidade que a pessoa agora tem para poder afirmar o que deixou por escrito, mas és livre de discordar.
Quanto aos testamentos, eu teria cuidado, não vá alguém
eutanasiar-te
Acho que estás a fazer uma generalização: há certamente pessoas dos extremos que não conseguem olhar criticamente para nada que não seja o que o próprio defende (já agora, isto não é apenas sintomático na política, a forma como nos relacionamos uns com os outros tem também alguma desta tendência para o foco no ego e para isso recomendo que experimentem ler algum dos livros do Byung-Chul Han, que gosta de falar um bocado nestas questões), mas isto não significa que não existam pessoas que estejam convictas que as suas ideias estão mais num dos eixos e isso não é sinónimo de desconsiderar o outro eixo, ou de deixar de reconhecer que é importante ter alguma diversidade, porque é a partir daí que muitas vezes se afinam os debates, que por muito que possam criar clivagens, contribuem também para que possamos melhorar as nossas convicções. Percebo o perfil que quiseste traçar, mas não acho que seja justo generalizar e não acho que seja uma boa forma de defender o centrismo. Fora isso, é absolutamente irrelevante a percentagem com que estamos em qualquer um dos eixos, é um número para já enviesado pelo teste e depois não é representativo das ideias que uma pessoa possa ou não ter. E é no debate de ideias que estou interessada.