Infelizmente, parece-me que vivemos numa cultura educativa altamente negativista, em que raramente os exames são encarados pelos alunos como uma oportunidade de fazerem uma prova global com outros alunos, compararem resultados, usarem esse elemento como forma de melhoria no futuro, etc. E isto não é culpa dos alunos
Peço imensa desculpa, mas tenho de intervir. Acho que tocais num dos principais problemas subjacentes à actual cultura em torno do ensino (ao "actual paradigma", como historicamente devo reconhecer que costumo dizer...
), e que acho que, embora já o tenha mencionado algures noutras discussões, vale a pena ser apontado muito mais frequentemente do que o é: precisamente a forma como os momentos de avaliação são concebidos e encarados, não só por alunos, não só por professores, mas pelo próprio sistema de ensino em si (e, sendo os exames o momento de avaliação mais notório, é natural que isto seja particularmente patente).
Se deixarmos de parte o grande peso da tradição, se estivéssemos a tentar construir um sistema de ensino a partir de uma
tabula rasa (quem se atreveria a sequer imaginar tão abstrusa tarefa?
) unicamente a partir do propósito que acho ser consensual que os sistemas de ensino têm, que é o de transmitir conhecimento (nas mais variadas formas concebíveis, e eventualmente no sentido mais amplo possível da palavra) aos alunos, que motivo teríamos para incluir momentos de avaliação? A única resposta lógica, parece-me, seria para garantir que os conhecimentos que deveriam ter sido transmitidos o foram verdadeiramente; visto que nem alunos nem professores são perfeitos, é concebível que haja falhas nessa transmissão, e então torna-se necessário que exista algum instrumento para garantir que não nos estamos a enganar quando reconhecemos que o aluno tem esses conhecimentos. Chamemos-lhe avaliação, chamemos-lhe (como eu preferiria) verificação, chamemos-lhe Hermenegildas ou Orlandos, acaba por ser sempre necessário algum mecanismo que afira o nível das aprendizagens efectuadas.
Seguindo esta linha de raciocínio, uma das principais conclusões que podemos tirar é que os resultados das Hermenegildas devem servir unicamente para detectar e corrigir as falhas que possam surgir no processo de ensino-aprendizagem. Um Orlando em que um aluno em particular não tivesse demonstrado o domínio da matéria em causa seria sinal de que a sua aprendizagem (por qualquer motivo a diagnosticar) não tinha corrido como desejado e que provavelmente teria de reaprender o que falhou; por outro lado,
uma Hermenegilda que revelasse que a maioria dos alunos tinha aprendido menos do que a totalidade da matéria seria sinal de um problema significativo, provavelmente não do lado dos alunos, mas dos métodos de ensino que tinham sido adoptados. Por outras palavras, saber que porção da matéria se domina só é útil na medida em que isso nos permita (re)calibrar as aprendizagens, de nada serve introduzir todo um calendário de Orlandos, planear as aulas em torno disso e simplesmente prosseguir como se nada se tivesse passado uma vez saídos os resultados dessas Hermenegildas.
O que sucede agora quando há resultados menos positivos? Segue-se em frente, há um programa a cumprir e a seguir vêm aí mais testes. Que conclusões se tira desses mesmos resultados? Nenhumas. Os erros que havia no processo de ensino-aprendizagem mantêm-se, a não ser nos (raros?) casos em que o aluno se sinta levado a aprender por si o que não pôde, ou não conseguiu, aprender no seio do sistema de ensino, ou então naqueles que seja obrigado a repetir a disciplina ou a totalidade do ano escolar (o que, por sua vez, acarreta também ter de repetir matérias que, em princípio, já tinha aprendido...). E, pior, perde-se menos tempo a verdadeiramente compreender a matéria do que a exercitar a tipologia de exercícios que é expectável que apareça no momento de avaliação. Tudo isto, no fundo, porque se pegou num instrumento que deveria servir o propósito final do ensino (ensinar) e se o colocou bem no centro de todas as actividades, numa ânsia de escalonar, ordenar, enfim, discriminar os alunos (já abordarei mais à frente o caso particular dos exames), sem ter o cuidado de extrair qualquer informação significativa desses resultados; dada a natureza humana, isto incentiva o estabelecimento de uma cultura onde a maximização das classificações é o mais importante, o que subverte o seu propósito: quem nunca (eu incluído) teve a clara noção de que houve certos conhecimentos que adquiriu/fixou especificamente para um dado teste e, uma vez concluído, que esses mesmos conhecimentos se esvaíram pouco tempo depois, mesmo tendo tido um bom resultado no teste?
Sinto-me obrigado a acrescentar outro problema: partindo do princípio que os resultados da avaliação conseguem traduzir o nível de conhecimento dos alunos (o que espero não precisar de admitir que é uma premissa um pouco tremida, mas necessária...), considerar como critério mínimo de passagem a nota correspondente a metade da escala implica que, na prática, um aluno apenas precisa de saber metade da matéria; por outro lado, acho que todos podemos concordar que (com a excepção de certas combinações potencialmente especiais de disciplina, professor e/ou estabelecimento de ensino -
if you know what I mean) está longe de ser fácil atingir a nota máxima, o que, por mais que se tente pintar como reflexo do velho aforismo de a perfeição ser inatingível, não consigo senão deixar de ver como inevitável marca de graves deficiências nos processos de ensino, admitindo mais uma vez que estamos efectivamente a aferir o nível de conhecimento dos alunos por intermédio dessas notas. O estado de coisas ideal seria aquele em que todos seriam capazes de ter nota máxima, por terem aprendido tudo o que deviam; se reiteradamente se verifica que tal não sucede, é porque não lhes estamos a ensinar bem, ou, em alternativa, os meios que estamos a usar para aferir o seu nível de conhecimento não funcionam tão bem como deveriam e precisam de ser rectificados.
Particularizando o caso dos exames nacionais, para além da estigmatização pré-existente de todos os momentos de avaliação, temos um outro factor (que acabam por partilhar com as restantes classificações do secundário): o da seriação. Podemos preencher rios de tinta acerca do efeito que os exames podem ter, ou não, sobre as médias dos alunos, com base nas possíveis combinações de nota interna e nota da prova; podemos (não sem razão) questionar até que ponto as notas internas são atribuídas em pé de igualdade a todos os alunos; podemos (com mais razão ainda) argumentar sobre o peso excessivo de umas poucas horas onde o
stress aumenta a possibilidade de errarmos em função do restante tempo de aulas. No entanto, e por mais natural (e, por vezes, necessário) que seja embrenhar-nos nessas discussões, penso que seria importante não perdermos de vista que tudo isto nasce sobretudo da necessidade de preencher um número mais ou menos arbitrariamente finito de vagas no ingresso ao ensino superior. Não vou alongar mais ainda esta minha intervenção discorrendo sobre as razões para isso ser assim, e as razões pelas quais acredito que isso não deveria ser assim, mas penso que a principal, ou a única, fundamentação plausível para a centralidade dos processos avaliativos nasce precisamente desta necessidade de seriação dos alunos. A natural e compreensível exigência de justiça e igualdade nessa seriação justifica a existência de um instrumento de avaliação global e o mais objectivo possível, para contrabalançar a muito natural tendência para, em certos contextos e em certas situações, haver inflação de notas; essa inflação de notas, por sua vez, só faz sentido porque essas notas irão ter um impacto na vida futura dos alunos. Se tenho um particular desapreço pelos exames nacionais enquanto símbolo de muito do que está errado com o actual sistema de ensino? Tenho. Se quero que eles existam? Não. Mas, mais do que a sua extinção, pura e simples, sou a favor da sua
desnecessidade.
E é com este vocábulo pouco usual que provavelmente se poderá resumir tudo o que aqui disse, que nasceu da minha vontade de fazer um curto comentário e se tornou num
rant enorme e absolutamente desnecessário. Perdoem a continuação do
off-topic, perdoem o tamanho da minha intervenção, mas... enfim...
gosto de falar de ensino.