Gostaria de expor as minhas apreciações sobre a professora de inglês do 11º (isto foi transcrição de algo que já escrevi antes...):
«Ela é o que nós podemos designar por "dândi feminina"... Terá os seus cinquenta bem puxados, já não vai para nova, mas, mesmo assim, insiste em cobrir-se de maquilhagem e de produtos igualmente eficazes para retardar o processo biológico mais natural que é o envelhecimento. Deve pulverizar-se de quantidades absurdas de pó de arroz, deve untar-se dos mais enganadores óleos rejuvenescedores, pois ela parece que nos vinha ensinar de máscara... Uma colega minha, conhecida pelos seus epigramas mordazes contra os professores, não tardou a pronunciar-se a respeito dos rituais de beleza a que a pobre senhora se sujeitava: "Ela parece um autêntico palhaço! Tem tantas camadas de base, que quando me está a explicar algo e se ri, temo logo que tudo aquilo estale e se venha cravar um pedaço na minha cara!". Eu nunca fui de vilipendiar professores nas suas costas (nem à sua frente!), mas até identifiquei a espirituosidade do dito e, inevitavelmente, sempre que a professora se ria, não me continha e ria também, mais por recordação da reminiscência do que propriamente para retribuir o riso...
A fisionomia da professora até seria medianamente suportável nas aulas, tirando os já expectáveis gracejos mais obscenos dos rufias da turma de humanidades (partindo do princípio que o dito da minha colega era inofensivo a nível de calão). Porém, o ridículo da pobre senhora ascendia também ao vestuário exuberante que envergava ("ostentava" talvez fosse o termo correto...). Todos os dias a víamos com uma nova combinação dos vários elementos que compõem o traje vulgar. Não temerei ser injusto se disser que ninguém das duas turmas ia com o temperamento dela. Apenas eu e os dois melhores alunos da turma de ciências nos coibíamos de açoitar a professora em praça pública, não porque aprovássemos o seu estilo de vida, mas por profundo respeito à autoridade instituída. Confesso, porém, que uma vez alimentei o tripúdio que se instalava, ainda que estivesse cego de indignação perante uma combinação de roupa da professora. Nesse dia, a professora estava toda de preto (mas não era claramente luto), carregava aos ombros um xaile pouco espesso, daqueles característicos dos fadistas lisboetas ou que seria admissível numa honesta carmelita, usava calças justas e de ganga escurecida e os pés deviam-se sentir a sufocar dentro de umas botas aterradoramente desproporcionadas e de aspeto tãoheavy-metal, que eram de arrepiar. Ela ostentava ao peito uma cruz de latão (como a que tão humildemente o Papa dá uso) e naquele dia em particular, gingou muito para que a cruz oscilasse e desse mostras da sua existência, apesar de já todos terem dado por ela. Confesso que fiquei ainda mais impressionado (como se isto não bastasse!) quando a professora no fim da aula, intercetada por uma questão minha a respeito do seu colar de cariz religioso, consignou que não era católica e que estava a usá-lo como mero adorno. A minha indignação não conheceu limites, como podes calcular, dado que, sendo eu um fervoroso católico, não podia admitir que alguém usasse uma cruz ao peito só porque era bonito! Toda a simbologia da cruz, bem como os seus poderosos efeitos (nomeadamente, o paládio contra o ser maligno) estavam assim a ser anulados pela pretensão da professora de se exibir! Saído da aula, e fora de mim, comentei com a segunda melhor aluna que a professora parecia uma freira fadista... O que o meu comentário teve de invulgar, e decerto o percebeste tu, foi o facto de ter reunido numa só pessoa características de duas, quase incompatíveis e antagónicas. Se a freira comporta no seu caráter toda a castidade das santas cousas, a fadista, por outro lado, está apegada a tudo quanto é de mais sórdido e abjeto, vivendo na devassidão e na estoinice absolutas. E o meu comentário não tinha apenas uma intenção risível, como podes concluir se te recordares do modo como te apresentei, a nível do vestuário, a professora naquele dia. Da cintura para cima, envergava um autêntico traje de casta monja; da cintura para baixo, se não se lhe conhecesse a cintura para cima, julgar-se-ia que se tratava de uma idólatra de Satanás (será que esse ser ainda merece nome maiúscula...) ou, do mal o menos, de uma simples fadista, se cuidarmos que a vida de fadista não tem as suas vicissitudes... Foi a única vez em que esbocei um dito insurrecto contra a autoridade e a partir dele não procuro vanglória, alarde ou reconhecimento, dado que fui apanhado num momento de maior decoro religioso. É certo que o dito circulou e que o nome do autor também, mas, graças aos santos, isso nunca calhou nos ouvidos errados, como os da DT ou da própria professora de inglês. E mesmo se calhasse, dado o facto de ter intactas permanentemente a minha sobriedade e conduta, julgar-se-ia que era calúnia (tão vulgares são na nossa escola!) e não se depositaria qualquer confiança.
Abordarei outro "vício" da referida professora de inglês. Ela, além de cuidar excessiva e imoderadamente da sua imagem, não é propriamente especialista na eleição de palavras do seu léxico para as explicações de matéria que vai dando, à turma de ciências, ou para as discussões que vai travando, com a turma de humanidades. Por esse motivo, recorre àquilo que em Português se designaria Processo de Neoformação de Palavras... Decerto compreenderás já o que quero chegar com esta afirmação... Além da prodigiosa capacidade para inventar palavras, ela ainda era capaz de utilizar as expressões mais estapafúrdias (ou em contextos estapafúrdios), julgando que os alunos seriam pacóvios e iletrados, não conseguindo distinguir o que se pode considerar palavra do que não é. E porque isto parece conversa fiada, passarei às palavras cuja autoria é da excelentíssima professora. Convém escrever uma nota de rodapé que diga que estas palavras eram vulgarmente arremessadas em processo de repreensão dos de humanidades. A primeira registada (porque reservei uma área particular do caderno para registar estas magníficas tiradas) foi "trangomância". Hás de me desculpar o facto de não te apresentar o contexto em que as palavras foram enquadradas (algo providencial para que se conseguisse, ainda que dubiamente, subentender a carga semântica atribuída a essa mistura aleatória de letras), mas a professora fala muito rapidamente e não fui capaz de o captar... Bom, prosseguindo: temos também as palavras "marocas", "chazada", "baldória", "chabascal" (ortografia arbitrariamente elegida por mim, dependendo dos traços fonéticos com que foram usados pela professora), entre outras que não cheguei a assentar, ou porque estava desatento nos momentos em que ela despedia as rancorosas reprimendas contra os rufias, ou porque a confusão mental da senhora, passando brusca e abruptamente de um assunto para outro nos obrigava a seguir o seu tortuoso raciocínio (ela tem um modo muito peculiar de fazer valer os seus pontos de vista...). Além de palavras enfaticamente pronunciadas (mas nulas em significado...), a professora faz uso das mais excêntricas expressões. Ora combina palavras existentes para formar uma estrutura macroscópica desprovida de sentidos, ora descontextualiza outras já existentes. Por vezes, tem umas saídas passíveis de serem simplesmente caracterizadas como alvares... Para exemplificar, comecemos com a afirmação "Olhem que eu não estou de serviço no departamento do bebé dorme!". Até se apreende o sentido; para os que têm ginástica mental, é evidente que a professora queria realçar o caráter pueril das atitudes dos rufias. Porém, a estrutura da frase é tão rústica e de uma originalidade tão decadente, que eles, malvados e desejosos de zombar, questionaram a professora quanto ao significado que ela pretendia atribuir à sua exclamação... Passaram o resto da santa semana a ridicularizar a pobre senhora (nesses momentos, digo-te sinceramente, até compartilhava a punção que a professora sentia ao se ver assim chasqueada...). Outras tiradas, igualmente célebres na nossa turma, foram "Não vou gastar os holofotes com vocês" (será que ela queria dizer que deixaria de lhes prestar atenção se continuassem assim? nesse caso, o que seriam os "holofotes"?...), "à reta via" (esta não sei mesmo o que significa...), "peal da logorreia" (uma inovadora, mas desditosa, combinação do português com o inglês, resultando igualmente numa expressão de intuito duvidoso), "parece que estou a desbravar uma floresta-virgem" (esta até que esta formosa, pois, além de ser original, tem significado inteligível), "Vou-vos enfiar uma garrafa pela boca abaixo!" (ameaça vagamente caricata, tendo em conta o sujeito de enunciação da mesma e a impossibilidade da sua perpetuação), "Vocês estão a imprimir um tipo de aula que não me interessa nada!" (possivelmente é a impressora que tem defeito, tem de ir para reparação...), "Isto aqui não é um bazar!" (ao ouvires isto no meio da aula, até imaginas a turma toda de burca e de turbante numa azáfama em zelosas negociações, dignas de serem consideradas "da China"...), "Tenho de me levantar, estou com o cóccix a doer!" (imagina agora a tua professora, inicialmente muito serena a ouvir a leitura de um texto, a levantar-se de súbito, interrompendo o leitor, e a massajar a zona do nervo ciático...), "Eu não sou mais tempo de antena!" (será que ela estava a fazer propaganda que não devia?!), "Está-se a concentrar nos braços de Morfeu" (esta está divina, principalmente porque foi bem aplicada; foi dirigida a um aluno que estava a fazer da sua secretária uma almofada e da sala, um dormitório...), "Ainda não vos mandei para aquela parte porque ainda não calhou" (aí está como insinuar má-educação sem se perder, contudo, a compostura cordial; note-se a repetição do "ainda", o que demonstra a eventualidade de esse "ainda" ser transposto e de a professora vir a reiterar a afirmação, mas sendo mais direta).»