O invisível: Autismo (PEA) e Educação Física


Já estou na faculdade. Nunca mais terei aulas de Educação Física, mas continuo a ver discussões sobre a sua contagem para a média de entrada no ensino superior, discussões essas que ao lê-las lembram-me de tudo o que passei na disciplina desde a escola primária ao secundário. E apesar do meu caso ser muito específico, não é único nem raro, e por isso sinto que não posso estar calada.

Eu tenho PEA (Perturbação do Espectro do Autismo). Nem toda a gente é afectada da mesma maneira, portanto nem toda a gente é como eu, mas uma das suas características mais comuns são problemas na motricidade, que eu tenho. Isto junta-se a hipersensibilidade sensorial (ex: som), uma maior dificuldade em me concentrar, e dificuldades sociais em jogos de grupo, especialmente se requerem toque. Isto tudo junto também me cansa mais facilmente.

Nunca consegui, desde a escola primária, ir propriamente atrás da bola. Consequentemente, até ao 9º ano, era quase sempre eu a última a ser escolhida para grupos, chegando até a passar aulas no banco. Raramente ouvia bem o que os professores diziam pois era incapaz de distinguir os sons então o meu método para fazer os exercícios era imitar os outros, ainda que mal. Quando planeávamos figuras para acrobática, com os outros grupos a falar ao mesmo tempo, ficava muitas vezes sem saber o que se estava a passar. A dança, que requer maior destreza física e música alta, foi sempre a minha maior dificuldade. No secundário às vezes alguns colegas ajudavam-me, mas não podem fazer tudo. Estas aulas eram apenas um lugar para onde ia e ficava com dores de cabeça uma hora e pouco até sair de lá cansada física e mentalmente.

Tudo isto dava-me a fama de distraída, preguiçosa e despreocupada, o que me fez ser humilhada por muitos professores ao longo da minha vida escolar, pois para eles era apenas uma questão de não me querer esforçar.

É que para o meu caso, assim como para os de milhares de crianças e adolescentes com outras deficiências, visíveis ou invisíveis, físicas ou não, essa mentalidade de se dizer “basta fazer o mínimo de esforço” é reflexo do capacitismo integrado na nossa sociedade. Há pessoas que são diagnosticadas mais tarde que em criança sofreram pois pensavam que toda a gente experienciava dor da mesma maneira precisamente porque foram vistas como preguiçosas. É isto que acontece quando professores, colegas, ou até mesmo famílias procuram um adjectivo negativo para descrever alguém antes de tentar compreender o que se está a passar. Situações relacionadas com dor não são o meu caso, mas também quis chamar à atenção deste problema.

E sim, há bons e maus professores em todas as disciplinas, e sim, é uma disciplina que deve ser respeitada como as outras. Mas a especificidade de Educação Física torna-a muito mais difícil de se ser adaptada às necessidades de cada individuo em contexto escolar, especialmente quando há centenas de professores que se recusam a ouvir, o que a torna num risco muito maior, especialmente para pessoas ainda sem diagnóstico.

Por volta do 8º ano um professor colocou-me num exercício para ajudar os meus colegas a não cair no chão depois dos saltos. Acontece que tenho uma velocidade de reacção lenta. Mesmo depois de várias pessoas se terem magoado, obrigou-me a ficar no mesmo sítio, colocando-me numa posição de humilhação e aos outros em risco.

No 9º ou 10º ano outro professor mandou-me fazer alongamentos para os ouros copiarem, ao que o meu nervosismo não me deixou. Ele percebeu que estava mal mas continuou a fazer-me o mesmo durante várias aulas seguidas até que conseguisse. Todas estas vezes em que ficava “congelada” com todos a olhar para mim, ria-se enquanto dizia coisas como “Não consegue, é”?

Já o 11º ano correu melhor. A professora que tive contribuiu de forma significativa para eu conseguir obter o meu diagnóstico oficial, mas nem isto me prepararia para aquele que viria a ter no 12º ano. Alem de muito mais rígido, quando no fim do 1º Período lhe disse que aquilo não estava feito para mim, respondeu-me “Porquê, preferias estar a fazer os teus desenhos sossegada?”, que me deixou sem palavras. Disse também que não me sentia bem com duas turmas juntas e que o barulho me incomodava muito, ao que comentou que era assim que as coisas funcionavam. Pedi algumas vezes à Directora de Turma para separarem as turmas, mas não pôde ser feito.

Parece, no entanto, que houve alguma falta de organização na escola e a ficha do meu diagnóstico foi perdida, o que poderá explicar até certa parte a reação do professor, mas não há qualquer desculpa para ter feito aquele comentário de gozo depois do “Isto não está feito para mim”.  A falta de organização levou a que mais tarde a minha psicóloga passasse uma declaração onde mencionou a minha coordenação motora, hipersensibilidade e problemas de interação e recomendou que eu pudesse sair por momentos da aula, tivesse a avaliação escrita simplificada e a física individualizada.

Os meus testes escritos continuavam iguais aos dos outros, mas pelo menos pude começar a sair da aula. Na componente física substituiu a avaliação da dança por um trabalho, mas mais tarde voltou a mandar-me dançar por muito que me custasse, ainda por cima com a música alta. Disse várias vezes que isto me incomodava imenso mas nas aulas seguintes continuava a fazer o mesmo, nem baixando o volume, por vezes dizendo que era essencial para o exercício. Já noutra avaliação disse-lhe que preferia fazer alguns exercícios individuais com menos gente a olhar, ao que me respondeu “Tens de te adaptar”. Mas tudo o que posso fazer é fingir que me adapto.

E enfim, afinal o que quero com tudo isto?

Quero que se discuta mais sobre os abusos cometidos por professores. É pessimamente mais comum do que a maioria das pessoas poderá pensar.

Quero que tanto alunos como professores percebam que não são só pessoas despreocupadas que se queixam de Educação Física, e não, as vezes não basta “fazer um esforço” por ser uma “disciplina fácil”. Para mim não foi nada fácil.

Quero que os bons professores que sei que existem usem a sua voz e discutam como podem tornar as suas aulas ainda mais acessíveis, e os maus que percebam onde erraram e os ouçam, e percebam como podem motivar os alunos a fazer o melhor que conseguem sem recorrer à humilhação.

Por último, enfim, a vocês que leem, compreendam que às vezes as coisas têm motivos.

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Este texto faz parte de uma série de textos de opinião de alunos do ensino secundário e superior sobre a sua visão do ensino e da educação.

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