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Repensar o sistema educativo para combater o capacitismo


No pico da pandemia da covid-19, quando metade da população se isolava em medo, a outra metade foi persuadida pelas campanhas negacionistas e anti-vacina. Afinal de contas, “é só uma gripe”, diziam eles. “Só afeta os mais velhos”, argumentam. E a cereja no topo do bolo, “Só morrem aqueles com problemas”, como se isso neutralizasse a ameaça da covid, ou como se a vidas dos mais velhos, e particularmente das pessoas com deficiência, fossem menos valorosas.

A verdade é que a quarentena obrigou-nos a experienciar um nível de isolamento social debilitante, mas que marca, há muito, a vida das pessoas portadoras de deficiência. Todavia, em vez de aproveitarmos esta situação para cultivarmos a empatia para com esta parte da população, as desigualdades e o capacitismo apenas se tornaram mais agressivos. Fala-se muito sobre inclusão, mas será que estamos a abrir espaço no nosso ativismo quotidiano, no nosso emprego, na nossa escola, para a pessoa que acompanha a deficiência, ou será que os nossos esforços erroneamente se focam na deficiência antes de sequer se considerar a pessoa?

Aprovada em 2018, a lei que estabelece o regime jurídico da Educação Inclusiva em Portugal quis dar uma nova amplitude ao conceito de Necessidades Educativas Especiais. Só que não, simplesmente colocar um aluno com deficiência por cada 20 alunos sem deficiência não corresponde a uma verdadeira inclusão ou integração. Se queremos ter um ambiente escolar realmente acessível e acolhedor para todos, isso começa com repensar o modo de ensino e os diferentes tipos de barreiras que uma mentalidade corpo-normativa gera. Isto quer dizer que devemos deixar de pensar que uma pessoa com deficiência é “incomum” e por isso tem de se adaptar ao que nós consideramos “normal”, mas o contrário ー nós temos que tornar os nossos espaços menos exclusivistas e tratar as pessoas com deficiência como pessoas acima de tudo. E isso reflete-se numa revisão das condições de ensino.

As barreiras mais óbvias à inclusão são as barreiras arquitetónicas que dizem respeito a todo o tipo de acessos, interiores ou exteriores, que dificultam a deslocação. Aqui fala-se de rampas, passeios e calçadas suficientemente largas e de materiais planos, elevadores, outro tipo de saídas de emergência, bem como casas de banho adaptadas.

As barreiras comunicacionais são dificuldades geradas pela falta de acesso à informação. O facto que a Língua Gestual Portuguesa, o braille, os intérpretes e a própria acessibilidade digital, são tratados como um acessório e não como um direito fundamental, mais uma vez aponta para a marginalização das pessoas com deficiência, em nome de uma opressão social que assenta na definição de uma inferioridade individual das pessoas socialmente definidas pelo idioma da deficiência.

Aliadas a estas surgem as barreiras instrumentais, que remetem para o uso das TIC, jogos didáticos e adaptações visuais ou auditivas, bem como ao corpo docente, professores que deviam ter conhecimentos básicos da educação especial, a maior disponibilidade de auxiliares e uma equipa de psicólogos ou assistentes sociais especializados em diagnosticar e acompanhar o aluno com deficiência pelos vários anos de escolaridade.

 Por último, as barreiras atitudinais estão atreladas à existência de preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações. Estas são perpetuadas na e pela ação da escola e somente via educação que será possível a erradicação de tais barreiras, ou pelo menos a mitigação das suas consequências. No imaginário social, a deficiência (principalmente a mental) adquiriu uma sinonímia com doença. A redução da pessoa à sua deficiência, provocando a ideia de que esta torna automaticamente a pessoa menos capaz ou inteligente, e antagonicamente, a idolatria e a perceção da pessoa com deficiência como “inspiradora” ou “guerreira” pelo simples facto de existir no seu corpo, são duas formas complementares de desumanização. Isto sempre serviu como justificativa para ações segregadoras nos mais diversos ambientes, e a escola, microcélula da sociedade, não se distancia do macro contexto.

Uma outra barreira, discutivelmente mais sorrateira, à visão da educação como direito fundamental reorientada para a promoção da equidade é, sem surpresas, a estagnação da organização dos sistemas educativos e a dificuldade geral dos professores em promover um ensino diferenciado em contexto de grupo. As razões para tal são várias: os blocos de tempo inadequados, falta de recursos e verbas, resistência das famílias e/ou órgãos superiores, prioridade das classificações… Essencialmente, todas elas culpabilizam a organização da escola como uma barreira para a flexibilização do aprender e do ensinar.

Isto acontece dado que se mantém a estrutura da escola de massas herdada da revolução industrial do séc. XIX, que hoje está completamente descompassada das necessidades e corpo de uma sociedade digital e global. No seio da revolução industrial tratar todos por igual impunha-se como o modelo mais justo, seguindo os princípios da organização do trabalho, ou a estandardização, onde o objetivo era produzir muito do mesmo produto; o princípio da conformidade, que através dos testes pretende a uniformidade dos alunos segundo habilidades pré-definidas; e o princípio da linearidade, isto é, a estruturação da escolaridade como uma sequência dividida por idades que determina a ordem de aprendizagem, e assim se promove a ideia de progresso simples e linear. Contudo, hoje substituímos a igualdade pela equidade, e conseguimos perceber que é precisamente este tipo de organização que por vezes torna a diversidade um problema.

Cada aluno que não se enquadre nos parâmetros previamente fixados ver-se-á encaminhado para as vias de exclusão, e isto afeta desproporcionalmente os alunos com deficiência. Consequentemente, isto perpetua uma lógica de darwinismo social quando o objetivo é hierarquizar os alunos numa escala de competência e excluir ou desencorajar o seguimento de estudos dos que se afastam da norma.

Esta distribuição normal na educação promove a associação da diversidade à incapacidade e/ou desigualdade, e esta exclusão vai incidir nos alunos com necessidades educativas especiais, que são aqueles que precisam de adaptação dos métodos pedagógicos ou de apoio adicional, simultaneamente normalizando o insucesso deste grupo. Por este mesmo motivo, muitos autores agora consideram o próprio conceito de NEE como uma forma de exclusão.

Uma solução para tornar o ensino inclusivo realmente inclusivo só pode conter, então, o repensar e a reestruturação do sistema educativo. Desde reconsiderar a linearidade da aprendizagem em nome de um percurso mais autónomo e adequado a cada aluno, desenvolvido no contexto de grupo, à reformulação dos currículos com o intuito de aplicar a interdisciplinaridade e de recorrer a mais e melhores cenários deliberativos que convoquem a participação dos alunos, pais, professores e dirigentes, uma reforma da essência do ensino é imprescindível para a verdadeira inclusão e integração dos alunos com deficiência.

Só isso desenhará uma nova sociedade que necessariamente terá que se libertar de uma normalidade capitalista, patriarcal e capacitista.

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Este texto faz parte de uma série de textos de opinião de alunos do ensino secundário e superior sobre a sua visão do ensino e da educação.

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