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Esta Barbie quer uma educação mais feminista


Vestidas e aperaltadas, milhares de pessoas viram o seu brinquedo favorito de infância ganhar vida na tela de cinema. Pela engenhosa mão de Greta Gerwig, Barbie (2023), foi uma bomba de glitter e purpurinas nas bilheteiras de todo o globo. Segundo o Jornal Expresso, o filme é “já o mais rentável de sempre da Warner Bros”, tendo amealhado até à data “1.34 milhões de dólares (cerca de 1.24 milhões de euros)”. É um sucesso inegável.

Mascarado por esbeltas perucas loiras e números de dança contagiantes, o mundo fantasioso da Barbie Land toca na beleza de ser-se humano, de viver, de crescer, de ficar mais velho. O emocionante discurso de Gloria (America Ferrera) ressoou com a experiência de existir como mulher num mundo estruturalmente sexista, que te diz que não estás a existir corretamente. Mais que isso, o filme revela como o patriarcado é insidioso, como magoa até mesmo o grupo que privilegia.

Apesar da sua receita exponencial, a opinião pública divide-se. Ao sair da sala de cinema e ao encarar um mundo tão escasso de cor-de-rosa, alguns criticam a sua suposta misandria, a sua narrativa radical demais, destinada somente a agradar uma audiência em particular. Outros, ironicamente, criticam a sua superficialidade e a inautenticidade de um feminismo cooptado pelo consumismo, dado a sua associação com a gigante Mattel. Ou é feminista demais ou não o é o suficiente.

A verdade é que estas reações informam-nos, mais do que sobre o filme, sobre a ignorância e esvaziamento do significado do termo “feminismo”, do seu peso e valor revolucionário, do seu potencial emancipatório. O feminismo é um movimento social, uma ideia política com várias ramificações e uma interessante evolução ideológica ao longo do tempo. O feminismo é, na sua essência, contra a opressão que o gênero socialmente construído origina e que a estrutura social do patriarcado sustenta. Mais ainda, é sobre a interseccionalidade do género com a raça, com a classe social, com a religião, com a (in)capacidade, … pois essas interseccionalidades, essas diferentes facetas da identidade, desempenham um papel determinante em como a opressão é experienciada.

 

Barbie, o filme, pode ser uma boa introdução ao tópico, mas nunca poderá ser feminista, porque o conceito da Barbie serve para gerar lucro e não lutar contra barreiras sistémicas para a igualdade. E isso não significa que o filme é mau ou hipócrita e que não tenha ajudado a dar uma nova visibilidade ao movimento.

Na sociedade ocidental, a mulher, como classe, já alcançou vários dos mesmos direitos públicos que o homem, mas o feminismo nunca deixará de ser necessário.

Segundo o relatório Gender-related killings of women and girls da UN Women de 2021, foram registados um total de 81.000 feminicídios em todo o mundo e, enquanto a maioria dos homicídios são cometidos contra rapazes e homens (81%), as raparigas e mulheres são desproporcionalmente afetadas pela violência homicida na esfera privada, sendo que 45.000 desses feminicídios foram cometidos por parceiros íntimos e outros familiares próximos. A UN Women, UNDP e o Pardee Center for International Futures também estimam que “globalmente, 388 milhões de mulheres e raparigas viverão em extrema pobreza em 2022, comparado com 372 milhões de homens e rapazes.  Para além disso, as mulheres e raparigas sofrem um pior impacto quanto às alterações climáticas, o qual amplifica as já existentes desigualdades de género e constitui ameaças únicas à sua subsistência, saúde e segurança. E isto são só algumas das milhares de estatísticas por aí disponíveis.

Conhecimento é poder. Mas o que esse ditado popular não nos diz é que o saber é socialmente construído. Não é por acaso que um dos primeiros direitos a serem violados perante um regime totalitário é precisamente o direito à educação. O acesso a esta é estendido e negado de forma calculista, dando poder a uns, retirando recursos a outros. Afinal, uma população ignorante é muito mais fácil de controlar e manipular. Sobretudo quando se trata de minorias já desprotegidas e mais vulneráveis. É um tipo de poder do qual o sistema patriarcal usa e abusa para conservar o status-quo.

 

Por exemplo, segundo a UNESCO, desde Setembro de 2021, o retorno às aulas para todas as raparigas afegãs com mais de 12 anos tem sido adiado indefinidamente, deixando 1.1 milhões sem acesso a uma educação formal. Em 2022, também a educação universitária para as mulheres foi suspensa, afetando mais de 100.000 estudantes. Esta batalha pelo direito das mulheres afegãs para aprender já não nos é desconhecida. Malala Yousafai já nos dizia “Com armas pode-se matar terroristas, com educação pode-se matar o terrorismo”.

Todavia, mesmo que o direito à educação não seja inteiramente violado, continua a ser importante olharmos para as estatísticas de analfabetismo, abandono escolar e precariedade do ensino – todos importantes indicadores que revelam o estado da igualdade de oportunidade para cada género, comunidade ou classe social.

Segundo o INE, PORDATA, os Censos de 2021 indicaram que, de um total de 292.809 indivíduos analfabetos, 67.8% eram mulheres. O Boletim Estatístico de 2022 do CIG faz notar que em cada 100 pessoas sem nenhum nível de escolaridade, 73 foram mulheres. Mais ainda, o Jornal Expresso recentemente partilhou que “Apesar de serem mais qualificadas do que os homens, as mulheres continuam a receber menos: a diferença é de 17.5% e tendência tem vindo a aumentar” – para que serve uma educação se esta nos é desvalorizada, se a participação no mercado de trabalho nos é roubada, se temos que fazer o dobro para conseguir metade?

Ler, contar, escrever, são das mais importantes armas para um arsenal intelectual, mas o pensar-se criticamente sobre o que lemos, escrevemos e tabulamos é ainda mais. Isto é, devemos contestar os valores, crenças e normas que nos são inadvertidamente passados pelos nossos educadores, que ora podem disseminar valores, crenças e normas subversivas, ora conservam as da cultura dominante, como se verifica na maior parte dos casos – isto é chamado de “Currículo Escondido”. “Não podemos compreender o conhecimento sem primeiro delinear os efeitos das relações de poder que simultaneamente permitem e limitam as possibilidades de discurso. (Flax 1993)

Tendo tudo isto em conta, esta Barbie defende a adoção de uma pedagogia feminista por mais instituições por todo o globo. O seu objetivo primário é desenvolver a compreensão dos estudantes sobre os múltiplos aspetos da identidade e com eles explorar a maneira como esses sistemas e instituições não só replicam desigualdades, mas se intersectam uns com os outros. Enfatiza-se, por exemplo, a interseccionalidade entre o sistema educacional com o econômico e cultural, ou seja, como uma mulher pobre ou uma mulher negra têm tipicamente uma experiência escolar bastante diferenciada daquela de uma mulher branca ou mais afluente.

A escola, particularmente o ensino superior, não é somente uma instituição neutra. Por muito que o corpo docente dê o seu melhor para tal, esta estará sempre profundamente implicada em formas ora de inclusão ora de exclusão que produzem certas verdades morais. (Giroux, 1993). Mesmo aqueles docentes que se consideram progressistas são capazes de, ano após ano, recomendar listas e listas de leituras obrigatórias e recomendadas sem uma única contribuição de alguém que não seja um homem branco. Isto devia ser inadmissível.

A análise da maquinação e construção da realidade através destes métodos e pontos de vista, ao contrário do que muitos possam pensar, não alimenta qualquer narrativa de vitimização; pelo contrário, empodera os alunos a navegar o mundo, a saboreá-lo, a transformá-lo. A sala de aula continua a ser um dos espaços mais radicais na academia. Uma pedagogia feminista não fará mais do que equipar os alunos com umas lentes que farão o mundo mais vivo, mais justo e mais cor-de-rosa.

As Barbies ainda têm bastante para aprender sobre inclusão e equidade para com os Kens, e nós também (afinal não terá sido precisamente essa a conclusão a que Gerwig queria chegar?). O nosso mundo pode não ser feito de plástico, mas tem tudo para ser fantástico se adotarmos as ferramentas que nos empoderem para saber questionar, criticar, discordar e sobretudo, empatizar na diferença e prosperar na mutualidade.

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Este texto faz parte de uma série de textos de opinião de alunos do ensino secundário e superior sobre a sua visão do ensino e da educação.

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