Artes Visuais e eu: Preguiça nível 99


Há alguns anos entrei para o 10º ano do curso cientifico-humanístico de Línguas e Humanidades. Uma professora ficou surpreendida comigo: “Mas não tinhas boas notas na outra área?”. Achei engraçado. No final do ano, desisti. Não tinha más notas, não odiava a matéria, mas todos os intervalos apenas fazia uma coisa: Desenhava.

No 9º ano morava no meio do nada numa vila alentejana. Não me via a ir para a faculdade, não sabia para que tal coisa me serviria. O secundário foi-nos apresentado como uma dicotomia entre Humanidades e Ciências, e apesar da escola ter um ou dois cursos profissionais, nunca nos falaram deles e as coisas que diziam sobre pessoas do profissional eram… estranhas, não que me lembre de algo específico. A escola mais próxima com Artes Visuais era a 40 km. Simplesmente não dava jeito. Sempre que pensava no curso de Artes, via-o como algo distante, para pessoas das cidades e com oportunidades… que eu até tinha… com condições. No seguinte ano lectivo, tive de tomar uma decisão. A apenas 3 km da casa dos meus avós, existia uma escola com Artes Visuais. Depois de várias discussões e de muito pensar, decidi ir para lá… para o distrito de Lisboa. Deixei o distrito de Beja, parte da família, os cães, os gatos, galinhas, o resto dos animais, e sem esquecer as aranhas, osgas, cobras e ratos que em ocasiões se convidavam a si próprios, tudo para estar no curso que queria no secundário. Quando disse a uma colega que a minha escola antiga era a 7 km de casa ela perguntou-me porque ia para uma tão longe. Foi a coisa mais lisboeta que já ouvi, e pelo contexto, uma das minhas memórias mais queridas.

Já tendo estado em LH, ouvir cenas do meu curso que me davam vontade de pedir a essas pessoas que me fizessem então os trabalhos e estudassem por mim não me era exactamente algo estranho. Qualquer pessoa de AV, LH, ou do profissional saberá do que falo. No entanto, com Artes isto chegou a outro nível, não exactamente inesperado. Comentários vindos de professores desde os banais “Ah, têm a vida muito difícil, os de Artes…” em Educação Física a um “Não vos chamei burros, chamei-vos preguiçosos!” em Português, depois da primeira vez que tentei defender o meu curso depois de tanto ouvir daquela boca.

Esta segunda foi uma frase que me ficou na cabeça… mas só mesmo a frase. Já não me resta a memória de como a conversa iniciou, continuou, ou terminou, e não sei se valeria a pena lembrar. Lembro-me que uma pessoa da turma de Ciências e Tecnologias, com quem tínhamos essas aulas, pediu-nos desculpa por tudo o que aconteceu. E eu pensei muito nisto. Desculpa porquê? Já ouvi comentários por outras pessoas de CT mas desta vez não fizeram nada. Porque hão de se sentir culpados? É culpa deles precisarem de médias maiores? É culpa deles que desde as nossas escolhas no fim do 9º ano sejam eles aqueles dos quais as pessoas mais esperam? Os mais bem vistos? É culpa deles o professor que tentou convencer uma colega minha a não seguir Artes dizendo-lhe que seria mal aproveitada? O que é uma pessoa ‘bem aproveitada’? 

 

Outra vez, começou-nos a ser dito que as pessoas de CT eram mais decididas e trabalhadoras, e que nós provavelmente nem sabíamos o que queríamos seguir, o que gerou variadas respostas dos meus colegas sobre cursos e faculdades. Eu sabia. Queria seguir História da Arte e em Coimbra, precisamente onde estou agora. Mas não o disse. Tive receio. Que diriam? Se ser de Artes Visuais já suscitava aqueles comentários, que ouviria eu ao responder ‘História da Arte’? E que vergonha passaria se me perguntassem a média? Tive de escolher batalhas e esta teve de ser uma defesa sem escudos ou contra-ataque. 

Neste momento a maioria dos meus amigos mais chegados são das Ciências e é incrível o quão alheia estava à pressão que eles mesmos sentem para conseguir seguir os seus sonhos ou o que é esperado deles, pressão essa tão distante da nossa, mas ao mesmo tempo tão perto porque existe sempre um medo de falhar. E deve ser tão estranho ser visto assim e não sentir que estão nesse «padrão».

Felizmente, quem fez alguns destes e outros comentários pediu «desculpa por qualquer coisa» no final desse ano. Imaginemos que foi sobre isto e fiquemos na paz. Tive dúvidas sobre escrever ou não este artigo. Será apenas outro entre muitos sobre preconceito entre cursos do secundário. Estou a adicionar alguma coisa à discussão? Não faço ideia, mas esta distância do secundário ajudou-me a ganhar outras perspectivas sobre todo o assunto.

Sempre achei que a maneira correcta de agir era provar o contrário às pessoas. Mostrar-lhes do que sou capaz. Ter notas altas. Provar que não somos preguiçosos. É uma boa mentalidade… para quem nunca falha. Eu tentei. Falhei. Falhei outra vez. Continuei a falhar e falhei até ao fim. Não pensava noutra coisa ao tentar estudar. E a cada página do livro mais sabia que jamais conseguiria ter aqueles números nas pautas que simbolizariam uma espécie de “Toma lá que não sou assim!”. Vertia lágrimas com aquelas páginas porque não compreendia aqueles conceitos complexos explicados em duas frases que agora aprendo em aulas inteiras… que inocência. Enfim, isto não é um desenho animado e eu não sou uma personagem principal a passar por dezenas de clips de estudo com alguma música motivante no fundo para conquistar algum objectivo que escreveram para mim. Nunca cheguei a ser boa aluna a Português, acabando com 99 no Exame Nacional. Agora até brinco com isso. Um 98 ou um 100 simplesmente não despertaria o mesmo efeito nas pessoas.

 

Estranhamente, devia de saber melhor por experiência. Já dizia um Da Vinci qualquer que a experiência é a mestra da vida. No 6º ano uma professora de matemática chamou-me parva por tirar uma dúvida. Fiz o mesmo. Esforcei-me. Consegui acabar com A na prova, e ela ficou orgulhosa de mim. Mas detestei que baseasse a maneira como agia connosco pelas nossas notas. Mas desta vez senti que, ao fazer esses testes, não me representava só a mim, mas a percepção de um curso inteiro.

E pior que tudo, senti que só podia ter direito uma opinião sobre sermos tratados assim se fosse boa aluna. Tinha acontecido o mais grave: Internalizei os preconceitos que vinham até mim de fora sem que desse por isso.

Quando percebi que devia de priorizar antes o meu desenvolvimento pessoal… já era tarde. Podia ter antes aproveitado mais o curso tirando dele o que precisava para mim e o meu futuro em vez de tentar provar alguma coisa aos outros. E não sei dizer porque pensei de maneira tão dramática. Tendo em conta a diversidade de coisas pelas quais passei, ter acabado o secundário com 14 valores foi uma grande conquista, e só agora vejo isto assim. Agora olho para trás, para a selecção de tudo o que persistiu na memória, e penso… era só o secundário… com tudo o que já tive de reaprender, realmente não valia a pena. Não, ó Pessoa, não vale tudo a pena, mas tu até valias se certas pessoas usassem o tempo desperdiçado a fabricar juízos de valor tóxicos para antes dar mais às aulas.

Nem somos nós alunos quem cria o programa de cada curso. Então porque nos dizem isto a nós? Porque é que nos tratam como se esta suposta dificuldade fosse reflexo da nossa pessoa? Acham que não temos a vida difícil o suficiente como um comentário que já mencionei? Acham Artes demasiado simples? Então que tal não nos fazerem perder tempo com vocês e irem-se queixar antes a quem o elabora, sei lá, à DGE, associações de professores? E enquanto isso experimentem usar o mesmo tom e insultos que usam connosco, a ver se também sentem que têm poder sobre eles. Somos todos iguais, não tratariam os vossos alunos menores pior do que tratariam uma pessoa da vossa idade, certo? (Notou-se o sarcasmo?).

Artistas, agora que apontei algumas falhas dos outros, falemos de nós. Achei o curso fácil? Credo, não. Exigiu de mim mais do que esperava, e nos 10ºs anos, entre LH e AV, não senti diferença de dificuldades. Mas até nós agimos como se desenhássemos o curso. Sabemos que não somos as Ciências e Tecnologias mas mesmo assim ao sermos confrontados tentamos ao máximo mostrar que somos iguais a elas. Porquê? Não somos nós o problema! Será a nossa melhor defesa comparamos a Geometria Descritiva à Matemática, e falar das horas que cada desenho leva? Já fui esse tipo de pessoa… mas será o melhor contraponto contra as atitudes de alguém? Se uma pessoa acredita religiosamente que o nosso esforço é inexistente, não é melhor concentrarmo-nos no preconceito em si em vez de algo em que eles nem acreditam?

Porque é que há tantos professores com ideias tão preconceituosas sobre cursos… que fazem… pausas… no seu trabalho de dar a matéria… para o qual são pagos… para nos chamar preguiçosos…?

Não sei se esta é a resposta certa, mas errada não é de certeza. Seremos mesmo nós, as pessoas que são indirectamente obrigadas por lei a aturar tudo com que os professores nos atiram, o problema?

Comparações devem ser produtivas e saudáveis, não forçadas para rebaixar alguém. A culpa não é da Matemática. Nem é a Física ou a Química que se acha superior a nós. Nem sequer vamos para as mesmas áreas profissionais. Porque é que somos desde os fins do 9º ano ensinados a competir? No mundo real não estamos divididos em áreas de secundário, nem os limites do nosso conhecimento são impostos pelo que escolhemos aos 15 anos. Agora estou num curso numa espécie de meio ponto entre Humanidades e Artes, e vou tirar dele o que preciso independentemente das circunstâncias. É apenas isso. 

Gostaria de terminar numa nota positiva. Apesar de ser uma pessoa decente não dever de ser uma conquista, quero agradecer a todos os professores simpáticos que nos dizem para não ligarmos aos outros professores, e também àqueles que, tento percebido os erros que cometeram, conseguiram superar tamanha arrogância e desculpar-se aos alunos. E perdoem-me os erros de escrita que caso não saibam não era boa a Português.

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Este texto faz parte de uma série de textos de opinião de alunos do ensino secundário e superior sobre a sua visão do ensino e da educação.

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