Fotografias íntimas de alunas da FEUP partilhadas sem consentimento geram indignação. O que fazer nestes casos?

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Um caso grave abalou recentemente a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP): fotografias e vídeos íntimos de alunas terão sido captados sem consentimento durante um evento académico e partilhados num grupo privado de WhatsApp. Vários membros da Associação de Estudantes da FEUP (AEFEUP) são acusados de tirar fotografias e filmar “por baixo das saias” de colegas durante a Gala de Aniversário da AEFEUP, em meados de março, e de as divulgar de imediato nesse grupo de chat​. O grupo contaria com cerca de oito elementos, incluindo pelo menos um dirigente atual (o presidente) e ex-membros da AEFEUP​. A denúncia partiu inicialmente de estudantes da FEUP e ganhou ampla divulgação quando Inês Marinho, fundadora do movimento Não Partilhes, expôs o caso nas redes sociais a 3 de abril​. Segundo o seu testemunho, “várias raparigas foram fotografadas por baixo das mesas e, sucessivamente, por baixo das saias”, e descobriu-se a existência de um grupo de WhatsApp onde eram partilhados esses e outros conteúdos íntimos, administrado por membros e ex-membros da associação de estudantes​. Esses atos correspondem à prática conhecida como “upskirting” (captar imagens por debaixo da roupa sem autorização) – um comportamento ilegal que em alguns países, como o Reino Unido, já constitui crime específico. Em Portugal, a divulgação não autorizada de imagens íntimas enquadra-se no crime de devassa da vida privada, punível com prisão até 1 ano ou multa até 240 dias, embora atualmente dependa de queixa das vítimas​ (o que motivou recentemente propostas legislativas para agravar este tipo de crime).

Reações e medidas: comunidade académica exige tolerância zero

A revelação destes factos causou indignação generalizada entre estudantes e docentes da U. Porto, levando a respostas firmes por parte das entidades académicas. A direção da AEFEUP enviou de imediato um email interno condenando “veementemente os acontecimentos recentes”, qualificando-os como “inaceitáveis e contrários aos valores da nossa comunidade académica”. A associação anunciou a convocação de uma Assembleia Geral extraordinária para esclarecer os estudantes e deliberar medidas adicionais, e garantiu que todos os elementos envolvidos foram “afastados dos respetivos cargos executivos” na AEFEUP, com efeitos imediatos​. Num comunicado público divulgado na noite de 3 de abril, a AEFEUP referiu ainda a existência de “uma alegada campanha de desinformação e extrapolação dos factos”, mas sem desmentir concretamente as acusações feitas​.

Do lado da faculdade, a direção da FEUP assegura estar a acompanhar o caso “de forma atenta e rigorosa”, tendo já iniciado a recolha e análise de todas as informações relevantes para apurar os factos e identificar responsáveis​. O diretor da FEUP, Rui Calçada, comunicou à comunidade que a faculdade está a tomar “todas as medidas adequadas, interna e externamente, junto das entidades competentes, tal como resulta da lei e dos regulamentos internos aplicáveis na Universidade do Porto”​. Em outras palavras, o caso poderá ter desenvolvimentos disciplinares e até criminais: “qualquer situação de abuso ou de bullying segue processos disciplinares e, em última análise, um processo judicial”, sublinhou o ministro da Educação, Fernando Alexandre, ao ser questionado sobre o incidente​. A FEUP reforça estar “profundamente empenhada” em garantir um ambiente académico seguro, inclusivo e de respeito mútuo, repudiando vigorosamente comportamentos que violem a privacidade ou a dignidade dos seus estudantes​.

A Federação Académica do Porto (FAP) – que agrega as associações de estudantes da região – também reagiu publicamente. Em nota divulgada no seu site, a FAP defendeu que é necessário adotar tolerância zero perante “quaisquer situações de abuso e discriminação no sistema de Ensino Superior”, reiterando que as universidades devem ser espaços de igualdade e respeito​. A federação esclareceu não ter recebido, até ao momento, nenhuma denúncia formal relativa a este caso; ainda assim, compromete-se a, caso receba alguma queixa, encaminhá-la de imediato para a Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) para averiguação​. Esta posição evidencia a gravidade com que o movimento estudantil encara o episódio da FEUP e a disponibilidade para acionar mecanismos externos de investigação, se necessário.

 

Entretanto, vozes da sociedade civil têm-se feito ouvir. Inês Marinho, a ativista que desvendou o caso, considerou insuficientes as medidas anunciadas e exige “uma posição mais severa” face a esta “situação predatória e de abuso de poder”. “Não basta afastar os envolvidos dos cargos; tem que se agir legalmente e oferecer proteção a todas as vítimas”, defendeu Marinho, apelando a que as autoridades competentes intervenham no processo​. Na mesma publicação onde expôs o caso, a responsável pelo Não Partilhes revelou ainda ter recebido denúncias sobre um alegado caso anterior de violação de uma aluna nas instalações do FEUP Café, imputado a um membro da AEFEUP (que terá sido expulso na altura)​. Esses relatos aumentaram a preocupação sobre a existência de uma cultura de impunidade em alguns contextos académicos, reforçando a urgência de medidas exemplares e preventivas.

Outros casos semelhantes em universidades portuguesas

Este incidente na FEUP não surge de forma isolada – nos últimos anos, têm vindo a público diversos casos de assédio, abuso e condutas impróprias no Ensino Superior português. Em 2022, por exemplo, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) revelou enfrentar um problema sério de assédio: no curto espaço de 11 dias, um canal de denúncias interno recolheu 50 queixas de assédio (moral e sexual) envolvendo 31 docentes – cerca de 10% do corpo docente da faculdade​. Esse levantamento, conduzido pelo Conselho Pedagógico, trouxe à tona relatos até então silenciados de comportamentos impróprios de professores em relação a alunos. A divulgação do relatório teve efeitos imediatos: a direção da FDUL criou, já em maio de 2022, um Gabinete de Apoio às Vítimas de Assédio para dar acompanhamento jurídico e psicológico aos estudantes afetados​. O gabinete, coordenado por profissionais externos (um advogado e uma psicóloga indicados pelas ordens profissionais), assegura “absoluta confidencialidade” às vítimas e orienta-as quanto à relevância disciplinar ou criminal das ocorrências, ajudando-as a decidir conscienciosamente se pretendem avançar com queixa formal​. Além disso, foi criado um endereço de email específico (denuncias@fd.ulisboa.pt) para receção de denúncias, através do qual chegaram já várias participações adicionais – algumas originando processos de inquérito internos. Este caso da FDUL foi uma das primeiras grandes exposições públicas da realidade do assédio no meio universitário português, mostrando que problemas deste tipo não estavam restritos a uma única instituição.

Meses depois, em abril de 2023, emergiu aquele que seria apelidado como o maior escândalo de alegado assédio sexual na academia portuguesa: o caso do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, envolvendo denúncias contra um conceituado professor e investigador (Boaventura de Sousa Santos)​. Várias investigadoras relataram ter sido vítimas de comportamentos impróprios por parte do docente ao longo de anos, levando a instituição a abrir um inquérito interno e, posteriormente, o próprio professor a afastar-se das funções que exercia. O caso ganhou repercussão internacional no meio académico e desencadeou debates sobre a forma como as universidades lidam com denúncias contra figuras de alto perfil. Ainda que de natureza distinta do episódio da FEUP (que envolve estudantes entre pares), o caso CES sublinhou novamente a importância de mecanismos eficazes de denúncia e de uma cultura institucional que não tolere abusos de poder.

 

Para além destes, outras ocorrências têm vindo a lume: no Instituto Politécnico do Porto, três docentes foram suspensos preventivamente em 2023 após queixas de assédio (dois por alegado assédio sexual e um por assédio moral)​; no Instituto Politécnico de Coimbra, um professor também foi suspenso após denúncias semelhantes​. Embora cada situação tenha contornos próprios, o denominador comum é a necessidade de ação por parte das instituições de ensino superior – quer ao nível disciplinar, quer preventivo – para garantir ambientes académicos saudáveis. Um estudo coordenado pela Universidade de Évora, publicado em finais de 2024, trouxe dados preocupantes: Portugal surge como o país europeu onde mais estudantes reportam ter sido vítimas de assédio sexual no meio universitário – cerca de 3,9% dos alunos inquiridos num universo de sete países​. Também no assédio moral (bullying) os números nacionais sobressaem (14,3% de incidência, o segundo valor mais alto do estudo)​. Embora possa indicar maior disposição em denunciar, estes números revelam uma realidade alarmante e reforçam a urgência de implementar políticas de prevenção, sensibilização e proteção em todas as universidades.

Mecanismos de denúncia e apoio às vítimas

Consciente desta problemática, o sistema de ensino superior português tem vindo a desenvolver mecanismos para que estudantes vítimas de assédio, violência sexual ou discriminação possam apresentar denúncias de forma segura e confidencial. Atualmente, existem vários canais e estruturas de apoio disponíveis – tanto ao nível de cada instituição como em âmbito nacional – que os alunos podem acionar quando enfrentam situações deste tipo. Entre os principais mecanismos contam-se:

  • Provedor do Estudante: Todas as universidades e politécnicos dispõem de um Provedor do Estudante, figura independente prevista no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). O provedor atua na defesa dos direitos e interesses legítimos dos estudantes, podendo receber queixas ou exposições sobre quaisquer problemas, incluindo casos de assédio ou discriminação​. Por estar fora da hierarquia de gestão da escola, o Provedor do Estudante garante imparcialidade e confidencialidade na apreciação das reclamações. Em muitos casos, este pode servir de mediador e recomendar ações corretivas. Na Universidade do Porto, por exemplo, o provedor Carlos Costa nota que para denúncias de casos mais sensíveis muitos alunos preferem recorrer ao anonimato de canais próprios de queixa, em vez de se identificarem logo de início​. Isso evidencia a importância de existirem vias seguras onde os estudantes sintam confiança para relatar abusos sem medo de retaliação.
  • Gabinetes e linhas de apoio internas: Diversas instituições criaram gabinetes especializados ou nomearam comissões de acompanhamento para lidar com situações de assédio, discriminação e violência no meio estudantil. Estes órgãos – que podem incluir psicólogos, juristas ou outros técnicos – oferecem aconselhamento confidencial e apoio às vítimas, auxiliando-as do ponto de vista emocional e informativo. Como referido, a FDUL implementou um gabinete pioneiro com apoio jurídico e psicológico externo para vítimas, bem como um endereço de email dedicado para denúncias internas​. Também a Universidade do Minho, em resposta a protestos dos alunos sobre insegurança no campus, passou a garantir apoio psicológico gratuito a estudantes que sejam vítimas de violência ou assédio sexual, de modo a que nenhuma vítima deixe de procurar ajuda por falta de recursos​. Em paralelo, muitas universidades dispõem de serviços de apoio psicológico e provedorias da ética ou igualdade que, embora não se foquem exclusivamente em assédio, podem encaminhar casos e dar apoio imediato aos estudantes. Importa destacar que algumas instituições disponibilizam formulários ou linhas de denúncia anónima online, integradas nos seus websites internos, permitindo reportar incidentes sem identificar de imediato o denunciante – diminuindo assim eventuais receios iniciais. Todas estas estruturas internas funcionam normalmente de forma confidencial, assegurando que a identidade das vítimas é protegida enquanto se apuram os factos e se decide sobre ações disciplinares.
  • Canais externos e nacionais: Para além dos mecanismos dentro de cada academia, os estudantes podem recorrer a entidades externas caso entendam necessário. A já mencionada IGEC (Inspeção-Geral da Educação e Ciência) é o organismo estatal que pode investigar irregularidades graves nas instituições de ensino superior – as denúncias podem ali ser apresentadas diretamente ou encaminhadas via estruturas como as federações académicas ou até pelo Provedor do Estudante, se a situação o justificar​. Adicionalmente, existe a Rede Nacional de Provedores do Estudante, coordenada pela Direção-Geral do Ensino Superior (DGES), que permite alguma articulação e partilha de boas práticas entre os provedores de diferentes instituições. Nos casos de assédio sexual que configurem crime (por exemplo, coerção sexual, abuso sexual, violação ou captura/divulgação de imagens íntimas ilícitas), os estudantes lesados podem e devem apresentar queixa às autoridades policiais (PSP, GNR ou Polícia Judiciária) para desencadear a via judicial – sendo que, em ambiente universitário, essas queixas podem ser feitas com o apoio dos referidos gabinetes ou da assessoria jurídica da associação de estudantes, se disponível. Por fim, no plano político, discute-se a criação de um mecanismo nacional unificado de denúncia: a FAP, por exemplo, tem proposto uma plataforma central (telefone ou portal web) onde qualquer aluno do país possa reportar anonimamente situações de assédio ou discriminação, garantindo tratamento adequado e acompanhamento dos casos​. Embora até ao momento o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tenha preferido reforçar as respostas dentro de cada instituição em vez de criar um novo organismo nacional​, a porta não está fechada a essa ideia – sobretudo perante a pressão crescente para se combater este tipo de violência de forma coordenada e eficaz em todas as faculdades.

Em suma, o caso das imagens íntimas partilhadas na FEUP veio lançar luz sobre um problema mais amplo de assédio e violação de privacidade no ensino superior, gerando repúdio e levando as instituições a agir. A curto prazo, espera-se que a Assembleia Geral de estudantes da FEUP esclareça os contornos deste episódio específico e que sejam aplicadas sanções exemplares aos responsáveis. Num plano mais alargado, porém, este incidente reforça a necessidade de cultivar uma cultura de respeito nas universidades e de dotar os estudantes de mecanismos nos quais confiem para denunciar qualquer abuso. As experiências recentes – desde a criação de gabinetes especializados, à atuação diligente de provedores e direções escolares, até propostas de linhas nacionais de apoio – mostram um caminho de melhoria. Para os estudantes, é essencial saber que não estão sozinhos: existe uma rede de apoio e estruturas prontas a ouvir, proteger e agir, de forma confidencial, garantindo que a busca por justiça não comprometa a sua segurança ou o seu percurso académico. Caso sintam ser alvo de assédio ou discriminação, os jovens são encorajados a quebrar o silêncio e a recorrer a esses recursos – só assim se poderá combater de frente estas situações e promover um ambiente universitário verdadeiramente seguro e inclusivo para todos.